Lúcia

Castro Alves

poema Na formosa estação da primavera Quando o mato se arreia mais festivo, E o vento campesino bebe ardente O agreste aroma da floresta virgem... Eu e Lúcia, corríamos — crianças — Na veiga, no pomar, na cachoeira, Como um casal de colibris travessos Nas laranjeiras que o Natal enflora. Ela era a cria mais formosa e meiga Que jamais, na Fazenda, vira o dia ... Morena, esbelta, airosa... eu me lembrava Sempre da corça arisca dos silvados Quando via-lhe os olhos negros, negros Como as plumas noturnas da graúna, Depois... quem mais mimosa e mais alegre?... Sua boca era um pássaro escarlate Onde cantava festival sorriso. Os cabelos caíam-lhe anelados Como doudos festões de parasitas... E a graça... o modo... o coração tão meigo?l... Ai! Pobre Lúcia... como tu sabias, Festiva, encher de afagos a família, Que te queria tanto e que te amava Como se fosses filha e não cativa... Tu eras a alegria da fazenda; Tua senhora ria-se, contente Quando enlaçavas seus cabelos brancos Coas roxas maravilhas da campina. E quando à noite todos se juntavam, Aos reflexos doirados da candeia, Na grande sala em torno da fogueira, Então, Lúcia, sorrindo eu murmurava: "Meu Deus! um beija-flor fez-se criança... Uma criança fez-se mariposa!" Mas um dia a miséria, a fome, o frio, Foram pedir um pouso nos teus lares... A mesa era pequena... Pobre Lúcia! Foi preciso te ergueres do banquete Deixares teu lugar aos mais convivas... Eu me lembro... eu me lembro... O sol raiava. Tudo era festa em volta da pousada... Cantava o galo alegre no terreiro, O mugido das vacas misturava-se Ao relincho das éguas que corriam De crinas soltas pelo campo aberto Aspirando o frescor da madrugada. Pela última vez ela chorando Veio sentar-se ao banco do terreiro... Pobre criança! que conversas tristes Tu conversaste então coa natureza. "Adeus! pra sempre, adeus, ó meus amigos, Passarinhos do céu, brisas da mata, Patativas saudosas dos coqueiros, Ventos da várzea, fontes do deserto! ... Nunca mais eu virei, pobres violetas, Vos arrancar das moitas perfumadas, Nunca mais eu irei risonha e louca Roubar o ninho do sabiá choroso... Perdoai-me que eu parto para sempre! Venderam para longe a pobre Lúcia!..." Então ela apanhou do mato as flores Como outrora enlaçou-as nos cabelos, E rindo de chorar disse em soluços: "Não te esqueças de mim que te amo tanto..." Depois além, um grupo, informe e vago, Que cavalgava o dorso da montanha, Ia esconder-se, transmontando o topo. . . Neste momento eu vi, longe... bem longe, Ainda se agitar um lenço branco... Era o lencinho tremulo de Lúcia... epílogo Muitos anos correram depois disto ... Um dia nos sertões eu caminhava Por uma estrada agreste e solitária, Diante de mim ua mulher seguia, — Co o cântaro à cabeça — pés descalços, Coos ombros nus, mas pálidos e magros ... Ela cantava, com uma voz extinta, Uma cantiga triste e compassada ... E eu que a escutava procurava, embalde, Uma lembrança juvenil e alegre Do tempo em que aprendera aqueles versos... De repente, lembrei-me. . . "Lúcia! Lúcia!" ... A mulher se voltou ... fitou-me pasma, Soltou um grito. . . e, rindo e soluçando, Quis para mim lançar-se, abrindo os braços. ... Mas súbito estacou ... Nuvem de sangue Corou-lhe o rosto pálido e sombrio ... Cobriu coa mão crispada a face rubra Como escondendo uma vergonha eterna ... Depois, soltando um grito, ela sumiu-se Entre as sombras da mata ... a pobre Lúcia!