O cego e a guitarra

Fernando Pessoa

O ruído vário da rua Passa alto por mim que sigo. Vejo: cada coisa é sua Oiço: cada som é consigo. Sou como a praia a que invade Um mar que torna a descer. Ah, nisto tudo a verdade É só eu ter que morrer. Depois de eu cessar, o ruído. Não, não ajusto nada Ao meu conceito perdido Como uma flor na estrada. Cheguei à janela Porque ouvi cantar. É um cego e a guitarra Que estão a chorar. Ambos fazem pena, São uma coisa só Que anda pelo mundo A fazer ter dó. Eu também sou um cego Cantando na estrada, A estrada é maior E não peço nada.