O cemitério na madrugada

Vinicius de Moraes

Às cinco da manhã a angústia se veste de branco E fica como louca, sentada, espiando o mar... É a hora em que se acende o fogo-fátuo da madrugada Sobre os mármores frios, frios e frios do cemitério E em que, embaladas pela harpa cariciosa das pescarias Dormem todas as crianças do mundo. Às cinco da manhã a angústia se veste de branco Tudo repousa... e sem treva, morrem as últimas sombras... É a hora em que, libertados do horror da noite escura Acordam os grandes anjos da guarda dos jazigos E os mais serenos cristos se desenlaçam dos madeiros Para lavar o rosto pálido na névoa.   Às cinco da manhã... — tão tarde soube — não fora ainda uma visão Não fora ainda o medo da morte em minha carne! Viera de longe... de um corpo lívido de amante Do mistério fúnebre de um êxtase esquecido Tinha-me perdido na cerração, tinha-me talvez perdido Na escuta de asas invisíveis em torno... Mas ah, ela veio até mim, a pálida cidade dos poemas Eu a vi assim gelada e hirta, na neblina! Oh, não eras tu, mulher sonâmbula, tu que eu deixei Banhada do orvalho estéril da minha agonia Teus seios eram túmulos também, teu ventre era uma urna fria Mas não havia paz em ti! Lá tudo é sereno... Lá toda a tristeza se cobre de linho Lá tudo é manso, manso como um corpo morto de mãe prematura Lá brincam os serafins e as flores, bimbalham os sinos Em melodias tão alvas que nem se ouvem... Lá gozam miríades de vermes, que às brisas matutinas Voam em povos de borboletas multicolores... Escuto-me falar sem receio; esqueço o amanhã distante O vento traz perfumes inconfessáveis dos pinheiros... Um dia morrerão todos, morrerão as amadas E eu ficarei sozinho, para a hora dos cânticos exangues Hei de colar meu ouvido impaciente às tumbas amigas E ouvir meu coração batendo. Tu trazes alegria à vida, ó Morte, deusa humílima! A cada gesto meu riscas uma sombra errante na terra Sobre o teu corpo em túnica, vi a farândola das rosas e dos lírios E a procissão solene das virgens e das madalenas Em tuas maminhas púberes vi mamarem ratos brancos Que brotavam como flores dos cadáveres contentes. Que pudor te toma agora, poeta, lírico ardente Que desespero em ti diz da irrealidade das manhãs? A Morte vive em teu ser... — não, não é uma visão de bruma Não é o despertar angustiado após o martírio do amor É a Poesia... — e tu, homem simples, és um fanático arquiteto Ergues a beleza da morte em ti! Oh, cemitério da madrugada, por que és tão alegre Por que não gemem ciprestes nos teus túmulos? Por que te perfumas tanto em teus jasmins E tão docemente cantas em teus pássaros? És tu que me chamas, ou sou eu que vou a ti Criança, brincar também pelos teus parques? Por ti, fui triste; hoje, sou alegre por ti, ó morte amiga Do teu espectro familiar vi se erguer a única estrela do céu Meu silêncio é o teu silêncio — ele não traz angústia É assim como a ave perdida no meio do mar... ............................................................................................ Serenidade, leva-me! guarda-me no seio de uma madrugada eterna!