Transfiguração da montanha

Vinicius de Moraes

E uma vez Ele subiu com os apóstolos numa montanha alta  E lá se transfigurou diante deles.  Uma auréola de luz rodeava-lhe a cabeça  Ele tinha nos olhos o paroxismo das coisas doces  Sua túnica tinha a alvura da neve  E nos seus braços abertos havia um grande abraço a toda a humanidade  A natureza parou estática  Só os pássaros cantavam melodias  Melodias doces como os olhos Dele  E veio uma nuvem grande e cobriu os apóstolos  E se ouviu uma voz:  "Este é meu filho bem-amado, em quem tenho posto todas as minhas  complacências; escutai-o!"  E os apóstolos escutaram a grande voz da nuvem, e se prostraram  E quando eles ergueram os olhos não havia mais nuvem  A natureza já não estava mais parada  Tudo continuava  Como os olhos Dele continuavam doces  E Ele lhes disse:  "Não faleis desta visão até que o filho do homem ressuscite dos mortos"  E lançando os olhos em torno Ele viu a terra embaixo  Viu a terra do alto da montanha  E viu a outra montanha do outro lado da terra  Era uma pedra imensa  Dominava tudo  De baixo, a terra olhava para a montanha  Admirada!  Ela tinha sido precipitada para cima  Pelas grandes forças da natureza  Na sua base, onde a floresta escorre em seiva  Onde pelos grandes troncos descem óleos vermelhos  E onde as folhas berram um cheiro enorme de mato bravo,  Os pássaros viviam na felicidade profunda de seus cantos  Grandes cobras dormiam nos desenhos de sol  E as borboletas eram fecundadas em pleno vôo. Às vezes vinha o vento  Entrava na selva  E levava até em cima um cheiro enorme de mato bravo.  A montanha tinha em si toda a natureza  Tinha um rio que dormia nos desenhos de sol  E que de repente acordava e pulava nas cascatas.  Ele viu tudo  Viu a montanha e viu a floresta  Viu principalmente a floresta  E amou muito a montanha  A montanha que possuía toda a natureza  Menos Ele  Seus divinos lábios entreabriram-se num sorriso  E ele falou para Deus:  "Dia virá em que hei de ter aquela pedra por trono  e lá de novo eu me transfigurarei!"  Depois tudo mudou  O mundo girou sempre, andou sempre  O mundo judeu errante.  Não parava na catástrofe  As guerras se sucediam  Os flagelos se sucediam  Andavam, sempre para a frente, sempre para a frente  Flagelos judeus errantes  O grande sentimento era o ódio  Ódio de tudo  Ódio grande  De corações pequenos  Os homens só tratavam de si  As mulheres tratavam de todos  Não mais a beleza da vida  Não mais o amor.  O tigre desperta e mata tudo  Mata os pequeninos que choram de medo  Mata as mães que têm os olhos despertos nas grandes noites da vida  E os pais que têm a fronte enrugada pelas preocupações.  Mata tudo.  Quer matar até Deus  Porque sabe que Ele vê todas as coisas  Vê os pequeninos que morrem  Vê os pais e as mães que morrem  E porque tem medo da Sua justiça.  Nas grandes sociedades havia muitas festas  Havia muitas festas e muitos vícios  Os homens bebiam para esquecer o dia de amanhã  E bebiam no dia de amanhã para esquecer o dia que passou  As mulheres bebiam para imitar os homens  E fumavam também  Não mais a arte  Não mais a poesia  A arte está na alma dos homens que bebem  A poesia canta a arte dessas almas bêbadas  Que é da poesia profunda da natureza?  Que é da arte da natureza?  Morreu.  Morreu com a alma do homem.  A alma do homem é como o amor morto  Onde todas as coisas bóiam à superfície  Ai! O tempo em que a alma do homem era o oceano  O grande oceano que guarda pérolas e possui vegetações esquisitas  E onde a luz bóia à superfície!  Mas o mundo mudou.  Ele foi esquecido  A transfiguração foi esquecida  Os homens só se lembraram Dele  Ou para ofendê-lo enquanto viviam  Ou para temê-lo covardemente na hora da morte.  Mas uns houve que não perderam o sentido da vida  Que guardaram na alma a grande simplicidade das coisas boas  Uns, que perdoavam  Uns, que socorriam e sorriam para a morte gloriosa  Eles tinham dentro da roupa preta que os vestia  A alma branca dos que são os bem-aventurados de Deus  Eles eram poucos  Foram aumentando  Pregaram aos outros o sentido da vida que eles possuíam  O mundo não escutava  Tinha a surdez profunda da inteligência  A vontade perseverante contudo fez efeito  E um dia, alto, formidável  A bela cabeça nas nuvens  E os pés na rocha bruta  Ele surgiu num esplendor de divindade  Transfigurado  Os braços abertos como num abraço  E os olhos suaves olhando a terra embaixo  Apareceu  Branco e enorme  Sobre a rocha escura e enorme  A rocha e Ele  Se unificaram na mesma beleza  O grupo formidável  Vivia a impressão  Da grande cena bíblica  A pedra que guardava a floresta  E o grande gigante meigo  Era como a cena bíblica  Da fundação da Igreja  A pedra enorme  Era a própria força espiritual de são Pedro  Posta na matéria  A base  A pedra da Igreja  E em cima, Ele, Senhor de todas as coisas  Belo e agigantado  Olhando as coisas embaixo  Com o olhar bom do que foi Homem  Com o amor do que […] o único Deus.  Senhor!  Tu estás lá  E tu estás em todos os lugares  E ouço a tua voz na música do mundo  E sinto a tua mão na plástica das coisas  Tu és o ponto de partida  Tu és o caminho  E és o fim do caminho  És o cardo que fere os pés  E a grama macia que os repousa  E a grande tempestade de vento  E o ar parado que sereniza.  És o pranto dos olhos  E o riso da boca  És o sofrimento do mundo  Numa promessa de eterna felicidade  És Deus  Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio  E que é o único perdão:           Amém.