A morte de madrugada

Vinicius de Moraes

Muerto cayó Federico.  Antonio Machado  Uma certa madrugada  Eu por um caminho andava  Não sei bem se estava bêbado  Ou se tinha a morte n'alma  Não sei também se o caminho  Me perdia ou encaminhava  Só sei que a sede queimava-me  A boca desidratada.  Era uma terra estrangeira  Que me recordava algo  Com sua argila cor de sangue  E seu ar desesperado.  Lembro que havia uma estrela  Morrendo no céu vazio  De uma outra coisa me lembro:  ... Un horizonte de perros  Ladra muy lejos del río...  De repente reconheço:  Eram campos de Granada!  Estava em terras de Espanha  Em sua terra ensangüentada  Por que estranha providência  Não sei... não sabia nada...  Só sei da nuvem de pó  Caminhando sobre a estrada  E um duro passo de marcha  Que em meu sentido avançava.  Como uma mancha de sangue  Abria-se a madrugada  Enquanto a estrela morria  Numa tremura de lágrima  Sobre as colinas vermelhas  Os galhos também choravam  Aumentando a fria angústia  Que de mim transverberava.  Era um grupo de soldados  Que pela estrada marchava  Trazendo fuzis ao ombro  E impiedade na cara  Entre eles andava um moço  De face morena e cálida  Cabelos soltos ao vento  Camisa desabotoada.  Diante de um velho muro  O tenente gritou: Alto!  E à frente conduz o moço  De fisionomia pálida.  Sem ser visto me aproximo  Daquela cena macabra  Ao tempo em que o pelotão  Se dispunha horizontal.  Súbito um raio de sol  Ao moço ilumina a face  E eu à boca levo as mãos  Para evitar que gritasse.  Era ele, era Federico  O poeta meu muito amado  A um muro de pedra seca  Colado, como um fantasma.  Chamei-o: Garcia Lorca!  Mas já não ouvia nada  O horror da morte imatura  Sobre a expressão estampada...  Mas que me via, me via  Porque em seus olhos havia  Uma luz mal-disfarçada.  Com o peito de dor rompido  Me quedei, paralisado  Enquanto os soldados miram  A cabeça delicada.  Assim vi a Federico  Entre dois canos de arma  A fitar-me estranhamente  Como querendo falar-me.  Hoje sei que teve medo  Diante do inesperado  E foi maior seu martírio  Do que a tortura da carne.  Hoje sei que teve medo  Mas sei que não foi covarde  Pela curiosa maneira  Com que de longe me olhava  Como quem me diz: a morte  É sempre desagradável  Mas antes morrer ciente  Do que viver enganado.  Atiraram-lhe na cara  Os vendilhões de sua pátria  Nos seus olhos andaluzes  Em sua boca de palavras.  Muerto cayó Federico  Sobre a terra de Granada  La tierra del inocente  No la tierra del culpable.  Nos olhos que tinha abertos  Numa infinita mirada  Em meio a flores de sangue  A expressão se conservava  Como a segredar-me: - A morte  É simples, de madrugada...