Adeus, Meu Canto

Castro Alves

I Adeus, meu canto! É a hora da partida... O oceano do povo sencapela. Filho da tempestade, irmão do raio, Lança teu grito ao vento da procela. O inverno envolto em mantos de geada Cresta a rosa de amor que além se erguera... Ave de arribação, voa, anuncia Da liberdade a santa primavera. É preciso partir, aos horizontes Mandar o grito errante da vedeta. Ergue-te, ó luz! — estrela para o povo, — Para os tiranos — lúgubre cometa. Adeus, meu canto! Na revolta praça Ruge o clarim tremendo da batalha. Águia — talvez as asas te espedacem, Bandeira — talvez rasgue-te a metralha. Mas não importa a ti, que no banquete O manto sibarita não trajaste —, Que se louros não tens na altiva fronte Também da orgia a coroa renegaste. A ti que herdeiro duma raça livre Tomaste o velho arnês e a cota darmas; E no ginete que escarvava os vales A corneta esperaste dos alarmas. É tempo agora pra quem sonha a glória E a luta... e a luta, essa fatal fornalha, Onde referve o bronze das estátuas, Que a mão dos seclos no futuro talha ... Parte, pois, solta livre aos quatro ventos A alma cheia das crenças do poeta!... Ergue-te ó luz! — estrela para o povo, Para os tiranos — lúgubre cometa. Há muita virgem que ao prostíbulo impuro A mão do algoz arrasta pela trança; Muita cabeça dancião curvada, Muito riso afogado de criança. Dirás à virgem: — Minha irmã, espera: Eu vejo ao longe a pomba do futuro. — Meu pai, dirás ao velho, dá-me o fardo Que atropela-te o passo mal seguro ... A cada berço levarás a crença. A cada campa levarás o pranto. Nos berços nus, nas sepulturas rasas, — Irmão do pobre — viverás, meu canto. E pendido através de dois abismos, Com os pés na terra e a fronte no infinito, Traze a bênção de Deus ao cativeiro, Levanta a Deus do cativeiro o grito! II Eu sei que ao longe na praça, Ferve a onda popular, Que às vezes é pelourinho, Mas poucas vezes — altar. Que zombam do bardo atento, Curvo aos murmúrios do vento Nas florestas do existir, Que babam fel e ironia Sobre o ovo da utopia Que guarda a ave do porvir. Eu sei que o ódio, o egoísmo, A hipocrisia, a ambição, Almas escuras de grutas, Onde não desce um clarão, Peitos surdos às conquistas, Olhos fechados às vistas, Vistas fechadas à luz, Do poeta solitário Lançam pedras ao calvário, Lançam blasfêmias à cruz. Eu sei que a raça impudente Do escriba, do fariseu, Que ao Cristo eleva o patíbulo, A fogueira a Galileu, É o fumo da chama vasta, Sombra — que o século arrasta, Negra, torcida, a seus pés; Tronco enraizado no inferno, Que se arqueia escuro, eterno, Das idades através. E eles dizem, reclinados Nos festins de Baltasar: "Que importuno é esse que canta Lá no Eufrate a soluçar? Prende aos ramos do salgueiro A lira do cativeiro, Profeta da maldição, Ou cingindo a augusta fronte Com as rosas dAnacreonte Canta o amor e a criação. . ." Sim! cantar o campo, as selvas, As tardes, a sombra, a luz; Soltar sualma com o bando Das borboletas azuis; Ouvir o vento que geme, Sentir a folha que treme, Como um seio que pulou, Das matas entre os desvios, Passar nos antros bravios Por onde o jaguar passou; É belo... E já quantas vezes Não saudei a terra — o céu, E o Universo — Bíblia imensa Que Deus no espaço escreveu?1 Que vezes nas cordilheiras, Ao canto das cachoeiras, Eu lancei minha canção, Escutando as ventanias Vagas, tristes profecias Gemerem na escuridão?! ... Já também amei as flores, As mulheres, o arrebol, E o sino que chora triste, Ao morno calor do sol. Ouvi saudoso a viola, Que ao sertanejo consola, Junto à fogueira do lar, Amei a linda serrana, Cantando a mole tirana, Pelas noites de luar! Da infância o tempo fugindo Tudo mudou-se em redor. Um dia passa em minhaalma Das cidades o rumor. Soa a idéia, soa o malho, O ciclope do trabalho Prepara o raio do sol. Tem o povo — mar violento — Por armas o pensamento, A verdade por farol. E o homem, vaga que nasce No oceano popular, Tem que impelir os espíritos, Tem uma plaga a buscar Oh! maldição ao poeta Que foge — falso profeta — Nos dias de provação! Que mistura o tosco iambo Com o tírio ditirambo Nos poemas daflição! ... "Trabalhar!" brada na sombra A voz imensa, de Deus — "Braços! voltai-vos pra terra, Frontes voltai-vos pros céus!" Poeta, sábio, selvagem, Vós sois a santa equipagem Da nau da civilização! Marinheiro, — sobe aos mastros, Piloto, — estuda nos astros, Gajeiro, — olha a cerração!" Uivava a negra tormenta Na enxárcia, nos mastaréus. Uivavam nos tombadilhos, Gritos insontes de réus. Vi a equipagem medrosa Da morte à vaga horrorosa Seu próprio irmão sacudir. E bradei: — "Meu canto, voa, Terra ao longe! terra à proa! ... Vejo a terra do porvir!. . . " III Companheiro da noite mal dormida, Que a mocidade vela sonhadora, Primeira folha dárvore da vida. Estrela que anuncia a luz da aurora, Da harpa do meu amor nota perdida, Orvalho que do seio se evapora, É tempo de partir... Voa, meu canto, — Que tantas vezes orvalhei de pranto. Tu foste a estrela vésper que alumia Aos pastores dArcádia nos fraguedos! Ave que no meu peito se aquecia Ao murmúrio talvez dos meus segredos. Mas hoje que sinistra ventania Muge nas selvas, ruge nos rochedos, Condor sem rumo, errante, que esvoaça, Deixo-te entregue ao vento da desgraça. Quero-te assim; na terra o teu fadário É ser o irmão do escravo que trabalha, É chorar junto à cruz do seu calvário, É bramir do senhor na bacanália... Se — vivo — seguirás o itinerário, Mas, se — morto — rolares na mortalha, Terás, selvagem filho da floresta, Nos raios e trovões hinos de festa. Quando a piedosa, errante caravana, Se perde nos desertos, peregrina, Buscando na cidade muçulmana, Do sepulcro de Deus a vasta ruína, Olha o sol que se esconde na savana Pensa em Jerusalém, sempre divina, Morre feliz, deixando sobre a estrada O marco miliário duma ossada. Assim, quando essa turba horripilante, Hipócrita sem fé, bacante impura, Possa curvar-te a fronte de gigante, Possa quebrar-te as malhas da armadura, Tu deixarás na liça o férreo guante Que há de colher a geração futura... Mas, não... crê no porvir, na mocidade, Sol brilhante do céu da liberdade. Canta, filho da luz da zona ardente, Destes cerros soberbos, altanados! Emboca a tuba lúgubre, estridente, Em que aprendeste a rebramir teus brados. Levanta das orgias — o presente, Levanta dos sepulcros — o passado, Voz de ferro! desperta as almas grandes Do sul ao norte... do oceano aos Andes!!...