Confidência

Castro Alves

Maldição sobre vós, doutores da lei! Maldição sobre vós, hipócritas! Assemelhais-vos aos sepulcros brancos por fora; o exterior parece formoso, mas o interior está cheio de ossos e podridão. Evang. de S. MATEUS, cap. XXII. Quando, Maria, vês de minha fronte Negra idéia voando no horizonte, as asas desdobrar, Triste segues então meu pensamento, Como fita o barqueiro de Sorrento As nuvens ao luar. E tu me dizes, pálida inocente, Derramando uma lágrima tremente, Como orvalho de dor: "Por que sofres? A selva tem odores, "0 céu tem astros, os vergéis têm flores, "Nossas almas o amor". Ai! tu vês nos teus sonhos de criança A ave de amor que o ramo da esperança Traz no bico a voar; E eu vejo um negro abutre que esvoaça, Que coas garras a púrpura espedaça Do manto popular. Tu vês na onda a flor azul dos campos, Donde os astros, errantes pirilampos, Se elevam para os céus; E eu vejo a noite borbulhar das vagas E a consciência é quem me aponta as plagas Voltada para Deus. Tua alma é como as veigas sorrentinas Onde passam gemendo as cavatinas Cantadas ao luar. A minha — eco do grito, que soluça, Grito de toda dor que se debruça Do lábio a soluçar. É que eu escuto o sussurrar de idéias, O marulho talvez das epopéias, Em torno aos mausoléus, E me curvo no túmlo das idades — Crânios de pedra, cheios de verdades E da sombra de Deus. E nessas horas julgo que o passado Dos túmulos a meio levantado Me diz na solidão: "Que és tu, poeta? A lâmpada da orgia, "Ou a estrela de luz, que os povos guia "À nova redenção?" Ó Maria, mal sabes o fadário Que o moço bardo arrasta solitário Na impotência da dor. Quando vê que debalde à liberdade Abriu sua alma - urna da verdade Da esperança e do amor! ... Quando vê que uma lúgubre coorte Contra a estátua (sagrada pela morte) Do grande imperador, Hipócrita, amotina a populaça, Que morde o bronze, como um cão de caça No seu louco furor! ... Sem poder esmagar a iniqüidade Que tem na boca sempre a liberdade, Nada no coração; Que ri da dor cruel de mil escravos, — Hiena, que do túmulo dos bravos, Morde a reputação! ... Sim... quando vejo, ó Deus, que o sacerdote As espáduas fustiga com o chicote Ao cativo infeliz; Que o pescador das almas já se esquece Das santas pescarias e adormece Junto da meretriz... Que o apóstolo, o símplice romeiro, Sem bolsa, sem sandálias, sem dinheiro, Pobre como Jesus, Que mendigava outrora à caridade Pagando o pão com o pão da eternidade, Pagando o amor com a luz, Agora adota a escravidão por filha, Amolando nas páginas da Bíblia O cutelo do algoz... Sinto não ter um raio em cada verso Para escrever na fronte do perverso: "Maldição sobre vós!" Maldição sobre vós, tribuno falso! Rei, que julgais que o negro cadafalso É dos tronos o irmão! Bardo, que a lira prostituis na orgia — Eunuco incensador da tirania — Sobre ti maldição! Maldição sobre tí, rico devasso, Que da música, ao lânguido compasso, Embriagado não vês A criança faminta que na rua Abraça ua mulher pálida e nua, Tua amante... talvez!... Maldição! ... Mas que importa?... Ela espedaça Acaso a flor olente que se enlaça Nas croas festivais? Nodoa a veste rica ao sibarita? Que importam cantos, se é mais alta a grita Das loucas bacanais? Oh! por isso, Maria, vês, me curvo Na face do presente escuro e turvo E interrogo o porvir; Ou levantando a voz por sobre os montes, — "Liberdade", pergunto aos horizontes, Quando enfim hás de vir?" Por isso, quando vês as noites belas, Onde voa a poeira das estrelas E das constelações, Eu fito o abismo que a meus pés fermenta, E onde, como santelmos da tormenta, Fulgem revoluções!...