O Vidente

Castro Alves

Virá o dia da felicidade para todos. (Isaías) Às vezes quando à tarde, nas tardes brasileiras, A cisma e a sombra descem das altas cordilheiras; Quando a viola acorda na choça o sertanejo E a linda lavadeira cantando deixa o brejo, E a noite - a freira santa - no órgão das florestas Um salmo preludia nos troncos, nas giestas; Se acaso solitário passo pelas picadas, Que torcem-se escamosas nas lapas escarpadas, Encosto sobre as pedras a minha carabina, Junto a meu cão, que dorme nas sarças da colina, E, como uma harpa eólia entregue ao tom dos ventos - Estranhas melodias, estranhos pensamentos, Vibram-me as cordas dalma enquanto absorto cismo, Senhor! vendo tua sombra curvada sobre o abismo, Colher a prece alada, o canto que esvoaça E a lágrima que orvalha o lírio da desgraça, Então, num santo êxtase, escuto a terra e os céus. E o vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus! Ouço o cantar dos astros no mar do firmamento; No mar das matas virgens ouço o cantar do vento, Aromas que selevam, raios de luz que descem, Estrelas que despontam, gritos que se esvaecem, Tudo me traz um canto de imensa poesia, Como a primícia augusta da grande profecia; Tudo me diz que o Eterno, na idade prometida, Há de beijar na face a terra arrependida. E, desse beijo santo, desse ósculo sublime Que lava a iniqüidade, a escravidão e o crime, Hão de nascer virentes nos campos das idades, Amores, esperanças, glórias e liberdades! Então, num santo êxtase, escuto a terra e os céus, O vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus! E, ouvindo nos espaços as louras utopias Do futuro cantarem as doses melodias, Dos povos, das idades, a nova promissão... Me arrasta ao infinito a águia da inspiração ... Então me arrojo ousado das eras através, Deixando estrelas, séculos, volverem-se a meus pés... Porque em minhalma sinto ferver enorme grito, Ante o estupendo quadro das telas do infinito... Que faz que, em santo êxtase, eu veja a terra e os céus, E o vácuo povoado de tua sombra, ó Deus! Eu vejo a erra livre... como outra Madalena, Banhando a fronte pura na viração serena, Da urna do crepúsculo, verter nos céus azuis Perfumes, luzes, preces, curvada aos pés da cruz... No mundo - tenda imensa da humanidade inteira Que o espaço tem por teto, o sol tem por lareira, Feliz se aquece unida a universal família. Oh! dia sacrossanto em que a justiça brilha, Eu vejo em ti das ruínas vetustas do passado, O velho sacerdote augusto e venerado Colher a parasita - a santa flor - o culto, Como o coral brilhante do mar na vasa oculto... Não mais inunda o templo a vil superstição; A fé - a pomba mística - e a águia da razão, Unidas se levantam do vale escuro dalma, Ao ninho do infinito voando em noite calma. Mudou-se o férreo cetro, esse aguilhão dos povos, Na virga do profeta coberta de renovos. E o velho cadafalso horrendo e corcovado, Ao poste das idades por irrisão ligado Parece embalde tenta cobrir com as mãos a fronte, - Abutre que esqueceu que o sol vem no horizonte. Vede: as crianças louras aprendem no Evangelho A letra que comenta algum sublime velho, Em toda a fronte há luzes, em todo o peito amores, Em todo o céu estrelas, em todo o campo flores ... E, enquanto, sob as vinhas, a ingênua camponesa Enlaça às negras tranças a rosa da deveza; Dos saaras africanos, dos gelos da Sibéria, Do Cáucaso, dos campos dessa infeliz lbéria, Dos mármores lascados da terra santa homérica, Dos pampas, das savanas desta soberba América Prorrompe o hino livre, o hino do trabalho! E, ao canto dos obreiros, na orquestra audaz do malho, O ruído se mistura da imprensa, das idéias, Todos da liberdade forjando as epopéias, Todos coas mãos calosas, todos banhando a fronte Ao sol da independência que irrompe no horizonte. Oh! escutai! ao longe vago rumor se eleva Como o trovão que ouviu-se quando na escura treva, O braço onipotente rolou Satã maldito. É outro condenado ao raio do infinito, É o retumbar por terra desses impuros paços, Desses serralhos negros, desses Egeus devassos, Saturnos de granito, feitos de sangue e ossos... Que bebem a existência do povo nos destroços ... .......................................................................... Enfim a terra é livre! Enfim lá do Calvário A águia da liberdade, no imenso itinerário, Voa do Calpe brusco às cordilheiras grandes, Das cristas do Himalaia aos píncaros dos Andes! Quebraram-se as cadeias, é livre a terra inteira, A humanidade marcha com a Bíblia por bandeira-. São livres os escravos... quero empunhar a lira, Quero que estalma ardente um canto audaz desfira, Quero enlaçar meu hino aos murmúrios dos ventos, Às harpas das estrelas, ao mar, aos elementos! ............................................................. Mas, ai! longos gemidos de míseros cativos, Tinidos de mil ferros, soluços convulsivos, Vêm-me bradar nas sombras, como fatal vedeta: "Que pensas, moço triste? Que sonhas tu, poeta?" Então curvo a cabeça de raios carregada, E, atando brônzea corda à lira amargurada, O canto de agonia arrojo à terra, aos céus, E ao vácuo povoado de tua sombra, ó Deus!