Pesadelo

Castro Alves

(POEMETO) I O RENDEZ-VOUS ERA UMA NOITE perfumada e lânguida. Contava a brisa amores à folhagem. Da lua num olhar voluptuoso Envolvia-se cândida paisagem. Quais lágrimas do céu, brancos orvalhos Trementes penduravam-se dos galhos. E as flores suspiravam molemente Da brisa ao receber os doces beijos. E o mar batia túmido nas praias Qual seio de donzela a arfar desejos. E nuvens lá no céu brancas passavam, Como garças formosas que adejavam. Quebrando a solidão longínquo canto Trouxe a brisa de terno bandolim, Voluptuoso, ardente e delicado, Como dharpa de etéreo serafim. E o canto — todo amores — todo gozo — Ia ecoando belo e languoroso. Era Joseph — o trovador ardente, Que o silêncio da noite perturbava. Era o bardo formoso, apaixonado Que a Andaluza fogosa fascinava. Pálido o rosto, negro o seu cabelo, Olhar cheio de luz... Ele era belo. Depois calou-se a voz... Como essas fadas Que à noite, quando voa a fantasia, Vemos, sentimos belas, vaporosas, — Anjos que o ideal somente cria; — Tal ou mais linda, abrindo uma janela, Surge uma virgem fascinante e bela. Era um rosto formoso de madona, Voava-lhe a madeixa destrançada. E o seio que tremia, — pelas rendas A lua olhava louca, apaixonada. Tinha um pé que invejara uma criança. Bem feliz quem ao peito lhe descansa!... Depois uns lábios férvidos se uniram Entre beijos dois nomes se escutaram... Dois nomes e mil beijos amorosos Nos lábios as palavras encerraram... Dois nomes em que a vida toda sia... Dois poemas de santa poesia... E a porta após rodou por sobre os quícios, E a murmurar deixou passar o amante... Somente um temo e lânguido suspiro Ouvi trazer a brisa sussurrante... E a lua então num lânguido desmaio Ciumenta lançou o último raio... II O ASSASSINO Uma noite era negro firmamento, Monótona caía fria chuva, E a terra envolta em véu de densas trevas Parecia chorosa uma viúva; Só as aves da noite regeladas Gritando se escondiam nas moradas. Trazia o vento o silvo da rajada Que lúgubre zunia nos pinheiros, Trazia gritos pávidos, medrosos, Talvez dalguns perdidos caminheiros, E no embate co’a branca penedia, O mar sinistro e tétrico rugia. De um lampião à luz incerta e vaga Um vulto negro e triste senxergava; Coberto do capote e do sombrero, O rosto macilento só mostrava... Mas dalgum raio ao brilho repentino Conhecereis — Jorge — o libertino — Que fazes, Jorge, a estas horas mortas? A noite está tristonha e friorenta; Vai aquecer da prostituta ao colo De libertino a fronte macilenta. Vai escaldar esta alma morta e fria Aos beijos do cognac quincendia. Vai... Quando a alma senjoa deste mundo Sempre descrente, acerbo dironia, O cognac nos dá formosos mundos, Castelos encantados de poesia. E entre um gol de cognac e uma fumaça Em ditoso delírio a vida passa. Mas Jorge está mais lúgubre e sombrio Que o mármore dum túmlo mais calado, Parece o seu olhar mais turvo e frio, O sulco do sobrolho mais cavado... Ai! Jorge... Vais unir ao libertino A covardia infame do assassino... E ele pouco esperou. Saudoso canto, Que suspirava ao longe, aproximou-se, E o canto era mais terno e mais sentido Quo último som do cisne que finou-se; Era um canto em que atroz pressentimento Segredava ao mancebo o passamento. Um momento depois um grito agudo Triste uniu-se da noite à voz sombria... Foi um grito somente e após ouviu-se O convulso estertor de umagonia... A noite se estendeu como um sudário Do cantor sobre o leito funerário. Somente após à fulva luz de um raio Veríeis uma virgem linda e nua... Tremia de terror, ouvira o grito... Stava pálida e branca como a lua, E quando viu o amante — de amargura Tornou-se a estátua pasma da loucura. III A LOUCA Laura, onde vais? Sozinha a tais desoras O vento há de gelar-te a branca pele. Como tremes convulsa, e que sorriso! Que chamas teu olhar ardente expele! Laura, onde vais! Os pés nus, delicados, Não maltrates nos seixos orvalhados. Mulher, a quem procuras a estas horas? Donzela, porque sais tão alta noite? Não vês como aparecem mil fantasmas? Não sentes da geada o frio açoite? E das aves da noite o triste pio Não faz por ti correr um calafrio? ... E ela seguia muda e taciturna, Nas rochas machucando o pé divino. Parecia sonâmbula perdida, Autômato a seguir o seu destino. Arfava o peito em ânsias ofegante, Seu olhar era fixo e fascinante. E seguia... e seguia... e nem ao menos Parava um só momento no caminho; Não sentia rasgarem-se-lhe as vestes De incultos ervaçais no duro espinho. O gênio da vingança é que a impelia... Como o Judeu errante ela seguia... ............................................ IV A ENTREVISTA NO TÚMULO Era um triste lugar. Entre ciprestes, Que a custo balançavam a ramagem, Onde só pra gemer tristes endechas Passava regelada e fria a aragem, Num esquife entreaberto está deitado Um cadáver de moço abandonado. E entregue às intempéries... sem amigos Sem ter quem vá ali chorar um pranto. Tu, que cantaste os sentimentos puros, Quencontraste no mundo um doce encanto, Tu dormes, sonhador, já macilento, Entregue aos vermes vis, posto ao relento. E esta fronte onde o gênio se inflamava, Donde brotava ardente a poesia, E os lábios que disseram sons cadentes, Que ensinava-te alegre a fantasia, São hoje como a lâmpada sem lume, — Harpa sem cordas, — flores sem perfume. Ninguém vem te chorar. Não, dentre as sombras Uma sombra passou branca e ligeira, Os ramos do arvoredo estremeceram, Espantada voou a ave agoureira... Quem perturba esta lúgubre morada? Uma mulher... É Laura, a apaixonada. E ela chegou-se rindo e soluçando Cum rir entre medonho e entre formoso, Seus lábios tressuavam de ironia Ao mesmo tempo de inocente gozo. Junto ao verde cadáver ajoelhou E com os lábios ardentes o beijou. Depois sentou-se triste junto ao esquife E as passadas cantigas recordando, Nos dedos frios, trêmulos, nervosos, Cos cabelos do amante ia brincando; Coa outra mão sobre o morto regelado Pôs um longo punhal ensangüentado. "Durmamos, disse ela, é meu amante! Não vês? Eu tenho as mãos ensangüentadas. Este sangue é de Jorge, é do assassino, Durmamos: tuas cinzas stão vingadas". ... Então beijou-o louca em devaneio E recostou-lhe a fronte no seu seio... ............................................ V OS DOIS CADÁVERES E depois quando a aurora ergueu-se linda, Viu a louca a embalar no seio o amante, Cantando mil cantigas e o beijando Sempre amorosa, triste e delirante... Mas a lua coos raios desmaiados Viu dois mortos unidos, abraçados ...