Doce Milagre

Florbela Espanca

O dia chora. Agonizo Com ele meu doce amor. Nem a sombra dum sorriso, Na Natureza diviso, A dar-lhe vida e frescor! A triste bruma, pesada, Parece, detrás da serra Fina renda, esfarrapada, De Malines, desdobrada Em mil voltas pela terra! (O dia parece um réu. Bate a chuva nas vidraças.) As avezitas, coitadas, 'Squeceram hoje o cantar. As flores pendem, fanadas Nas finas hastes, cansadas De tanto e tanto chorar... O dia parece um réu. Bate a chuva nas vidraças. É tudo um imenso véu. Nem a terra nem o céu Se distingue. Mas tu passas... E o sol doirado aparece. O dia é uma gargalhada. A Natureza endoidece A cantar. Tudo enternece A minh'alma angustiada! Rasgam-se todos os véus As flores abrem, sorrindo. Pois se eu vejo os olhos teus A fitarem-se nos meus, Não há de tudo ser lindo?! Se eles sao prodigiosos Esses teus olhos suaves! Basta fitá-los, mimosos, Em dias assim chuvosos, Para ouvir cantar as aves! A Natureza, zangada, Não quer os dias risonhos?... Tu passas... e uma alvorada Pra mim abre perfumada, Enche-me o peito de sonhos!