Cíclades (evocando Fernando Pessoa)

Sophia de Mello Breyner Andresen

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença O teu nome emerge como se aqui O negativo que foste de ti se revelasse Viveste no avesso Viajante incessante do inverso Isento de ti próprio Viúvo de ti próprio Em Lisboa cenário da vida E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria O empregado competente de uma casa Comercial O frequentador irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo (Onde ainda no mármore das mesas Buscamos o rastro frio das tuas mãos - O imperceptível dedilhar das tuas mãos) Esquartejado pelas fúrias do não-vivido À margem de ti dos outros e da vida Mantiveste em dia os teus cadernos todos Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas Das múltiplas navegações da tua ausência - Aquilo que não foi nem foste ficou dito Como ilha surgida a barlavento Com prumos sondas astrolábios bússolas Procedeste ao levantamento do desterro Nasceste depois E alguém gastara em si toda a verdade O caminho da Índia já fora descoberto Dos deuses só restava O incerto perpassar No murmúrio e no cheiro das paisagens E tinhas muitos rostos Para que não sendo ninguém dissesses tudo Viajavas no avesso no inverso no adverso Porém obstinada eu invoco - ó dividido - O instante que te unisse, E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria Que os deuses não te deram nem quiseste Este é o pais onde a carne das estátuas como choupos estremece Atravessada pelo respirar leve da luz Aqui brilha o azul-respiração das coisas Nas praias onde há um espelho voltado para o mar Aqui o enigma que me interroga desde sempre E mais nu e veemente e por isso te invoco: "Porque foram quebrados os teus gestos? Quem te cercou de muros e de abismos? Quem derramou no chão os teus segredos?" Invoco-te como se chegasses neste barco E poisasses os teus pés nas ilhas E a sua excessiva proximidade te invadisse Como um rosto amado debruçado sobre ti No estio deste lugar chamo por ti Que hibernaste a própria vida como o animal na estaçao adversa Que te quiseste distante como quem ante o quadro pra melhor ver recua E quiseste a distância que sofreste Chamo por ti - reúno os destroços as ruínas os pedaços - Porque o mundo estalou como pedreira E no chão rolam capitéis e braços Colunas divididas estilhaços E da ânfora resta o espalhamento de cacos Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros Porém aqui as deusas cor de trigo Erguem a longa harpa dos seus dedos E encantam 0 sol azul onde te invoco Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência Pudesse o instante da festa romper o teu luto Ó viúvo de ti mesmo E que ser e estar coincidissem No um da boda Como se o teu navio te esperasse em Thasos Como se Penélope Nos seus quartos altos Entre seus cabelos te fiasse