A última viagem de Jayme Ovalle

Vinicius de Moraes

A última viagem de Jayme Ovalle Ovalle não queria a Morte  Mas era dele tão querida  Que o amor da Morte foi mais forte  Que o amor do Ovalle à vida.  E foi assim que a Morte, um dia  Levou-o em bela carruagem  A viajar - ah, que alegria!  Ovalle sempre adora viagem!  Foram por montes e por vales  E tanto a Morte se aprazia  Que fosse o mundo só de Ovalles  E nunca mais ninguém morria.  A cada vez que a Morte, a sério  Com cicerônica prestança  Mostrava a Ovalle um cemitério  Ele apontava uma criança.  A Morte, em Londres e Paris  Levou-o à forca e à guilhotina  Porém em Roma, Ovalle quis  Tomar a sua canjebrina.  Mostrou-lhe a Morte as catacumbas  E suas ósseas prateleiras  Mas riu-se muito, tais zabumbas  Fazia Ovalle nas caveiras.  Mais tarde, Ovalle satisfeito  Declara à Morte, ambos de porre:  - Quero enterrar-me, que é um direito  Inalienável de quem morre!  Custou-lhe esforço sobre-humano  Chegar à última morada  De vez que a Morte, a todo pano  Queria dar uma esticada.  Diz o guardião do campo-santo  Que, noite alta, ainda se ouvia  À voz da Morte, um tanto ou quanto  Que ria, ria, ria, ria... Jayme Ovalle (Belém, PA,1894 - Rio de Janeiro, RJ, 1955) foi músico e compositor. Em 1914, fixou residência no Rio de Janeiro e passou a frenqüentar a noite boêmia, tornando-se companheiro de bambas como Sinhô e Pixinguinha. Adiante, aproximou-se da música erudita, porém, como Villa-Lobos, seu amigo, utilizou temas religiosos e folclóricos em suas mais famosas composições: Berimbau, Três pontos de Santo, Chariô, Aruanda e Estrela do Mar. A notoriedade veio com Azulão, melodia a qual Manuel Bandeira juntou seus versos. Era querido por escritores, pintores e músicos. Assim Vinicus de Moraes definiu o amigo Ovalle: "é o poeta em estado virgem. A mais bela crisálida de poesia que jamais existiu desde William Blake. É o mistério poético em toda a sua inocência, em toda a sua beleza natural. É vôo, é transcendência absoluta. É amor em estado de graça." (apud SABINO, Fernando, "Fragmentos de uma suíte ovalliana". Jornal do Brasil, 15.07.1974.)