Esta manhã a casa madruguei…

Vinicius de Moraes

Esta manhã a casa madruguei.  Havia elfos alados nos gelados  Raios de sol da sala quando entrei.  Sentada na cadeira de balanço  Resplendente, uma fada balançava-se  Numa poça de luz. Minha chegada  Gigantesca assustou os gnomos mínimos  Que vertiginosamente se escoaram  Pelas frinchas dos rodapés. A estranha  Presença matinal do ser noturno  Desencadeou no cerne da matéria  O entusiasmo dos átomos. Coraram  Os móveis decapês, tremeram os vidros  Estalaram os armários de alegria.  Eram os claros cristais de luz tão frágeis  Que ao tocar um, desfez-se nos meus dedos  Em poeira translúcida, vibrando  Tremulinas e harpejos inefáveis.  Era o inverno, ainda púbere. Bebi  Sofregamente um grande copo de ar  E recitei o meu epitalâmio.  Nomes como uma flor, uma explosão  De flor, vieram da infância envolta em trevas  Penetrados de vozes. Num segundo  Pensei ver o meu próprio nascimento  Mas fugi, tive medo. Não devera  A poesia...  Tão extremo era o transe matutino  Que pareceu-me haver perdido o peso  E esquecido dos meus trinta e quatro anos  Da clássica ruptura do menisco  E das demais responsabilidades  Pus-me a correr à volta do sofá  Atrás de prima Alice, a que morreu  De consumpção e me deixava triste.  Infelizmente acrescentei em quilos  E logo me cansei; mas as asinhas  Nos calcanhares eram bimotores  A querer arrancar. Pé ante pé  Fui esconder-me atrás da geladeira  O corpo em bote, os olhos em alegria  Para esperar a entrada de Maria  A empregada da llha, também morta  Mas de doença de homem - que era aquela  Confusão de querer-se e malquerer-se  Aquela multiplicação de seios  Aquele desperdício de saliva  E mãos, transfixiantes, nomes feios  E massas pouco a pouco se encaixando  Em decúbito, até a grande inércia  Cheia de mar (Maria era mulata!).  Depois foi Nina, a plácida menina  Dos pulcros atos sem concupiscência  Que me surgiu. Mandava-me missivas  Cifradas que eu, terrível flibusteiro  Escondia no muro de uma casa  (Esqueci de que casa ... ) Mas surpresa  Foi quando vi Alba surgir da aurora  Alba, a que me deixou examiná-la  Grande obstetra, com a lente de aumento  Dos textos em latim de meu avô  Alba, a que amava as largatixas secas  Alba, a ridícula, morta de crupe.  Milagre da manhã recuperada!  A infância! Sombra, és tu? Até tu, Sombra...  Sombra, contralto, entre os paralelepípedos  Do coradouro do quintal. Oh, tu  Que me violaste, negra, sobre o linho  Muito obrigado, tenebroso Arcanjo  De ti me lembrarei! Bom dia, Linda  Como estás bela assim descalça, Linda  Vem comigo nadar! O mar é agora  A piscina de Onã, de lodo e alga...  Quantos cajus tu me roubaste, feia  Quanto silêncio em teus carinhos, Linda  Longe, nas águas... Sim! é a minha casa  É a minha casa, sim, a um grito apenas  Da praia! Alguém me chama, é a gaivota  Branca, é Marina! (A doida já chegava  Desabotoando o corpete de menina...)  Marina, como vais, jovem Marina  Deslembrada Marina... Vejo Vândala  A rústica, a operária, a compulsória  Que nos levava aos dez para os baldios  Da Fábrica, e como aos bilros, hábil  Aos dez de uma só vez manipulava  Ern francas gargalhadas, e dizia  De mim: Ai, que este é o mais levado!  (Pela mulher, sim, Vândala, obrigado...  E tu, Santa, casada, que me deste  O Coração, posto que de De Amicis  Tu que calçavas longamente as meias  Pretas que me tiraram o medo à treva  E às aranhas... some, jetatura  Masturbação, desassossego, insônia!  Mas tu, pequena Maja, sê bem-vinda:  Lembra-me tuas tranças; recitavas  Fazias ponto-à-jour, tocavas piano  Pequena Maja... Foi preciso um ano  De namoro fechado, irmão presente  Para me dares, louco, de repente  Tua mão, como um pássaro assustado.  No entanto te esqueci ao ver Altiva  Princesa absurda, cega, surda e muda  Ao meu amor, embora me adorando  De adoração tão pura. Tua cítara  Me ensinou um ódio estúpido à Elegia  De Massenet. Confesso, dispensava a cítara  Ia beber desesperado. Mas  Foi contigo, Suave, que o poeta  Apreendeu o sentido da humildade.  Estavas sempre à mão. Telefonava:  Vamos? Vinhas. Inda virias. Tinhas  Um riso triste. Foi o nada quereres  Que tão pouco te deu, tristonha ave...  Quanta melancolia! No cenário  Púrpura, surges, Pútrida, luética  Deusa amarela, circunscrita imagem ...  Obrigado no entanto pelos êxtases  Aparentes; lembro-me que brilhava  Na treva antropofágica teu dente  De ouro, como um fogo em terra firme  Para o homem a nadar-te, extenuado.  Mas que não fuja ainda a enunciada  Visão... Clélia, adeus minha Clélia, adeus!  Vou partir, pobre Clélia, navegar  No verde mar... vou me ausentar de ti!  Vejo chegar alguém que me procura  Alguém à porta, alguma desgraçada  Que se perdeu, a voz no telefone  Que não sei de quem é, a com que moro  E a que morreu... Quem és, responde!  És tu a mesma em todas renovada?  Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!