O poeta em trânsito ou o filho pródigo

Vinicius de Moraes

Acordarei as aves que, noturnas  Por medo à treva calam-se nos galhos  E aguardam insones o romper da aurora.  Despertarei os bêbados nos pórticos  Os cães sonâmbulos e os gerais mistérios  Que envolvem a noite. Pedirei gritando  Ao mar que mate e ao vento que violente  As jovens praias de pudor tão branco.  Quebrarei com ressacas e risadas  O silêncio habitual de Deus na noite  A intimidar os homens. Que a cidade  Ponha o xale da lua sobre a fronte  E saia a receber o seu poeta  Com ramos de jasmim e outras saudades.  A hora é de beleza. Em cada pedra  Em cada casa, em cada rua, em cada  Árvore, vive ainda uma carícia  Feita por mim, por mim que fui amante  Urbano, e mais que urbano, sobre-humano  Na noturna cidade desvairada.  Provavelmente não virei montado  Em cavalo nenhum, como soía  Nem de armadura, que essa, a poesia  Mais que nenhuma me defenderia  Numa cota de malhas de silêncio.  É bem possível até que chegue bêbado  E se em janeiro, de camisa esporte.  O importante é chegar, ser a unidade  Entre a cidade e eu, eu e a cidade  Ouvir de novo o mar se estilhaçando  Nas rochas, ou bramindo no oceano  Sozinho como um deus.................................  .......................................................................  .............................................Ó bem-amada  Rio! como mulher petrificada  Em nádegas e seios e joelhos  De rocha milenar, e verdejante  Púbis e axilas e os cabelos soltos  De clorofila fresca e perfumada!  Eu te amo, mulher adormecida  Junto ao mar! eu te amo em tua absoluta  Nudez ao sol e placidez ao luar.  Junto de ti me sinto, tua luz  Não fere o meu silêncio. O meu silêncio  Te pertence. Eu sei que resguardada  Dos seres que se movem entre teus braços  Teus olhos têm visões de outros espaços  Passados e futuros...                                      Como às vezes  Sobre a lunar estrada Niemeyer  Entre o clamor das ondas fustigadas  Meditam as montanhas. Que silêncio  Se escuta ali pousar, que gravidade  Da natureza! Eu sei, é bem verdade  Que sob o sol o Rio é muito claro  Muito claro demais, e sem mistério.  Eu sei que ao revérbero de janeiro  Morrem segredos como morrem as aves  Contentes de morrer. Eu sei tudo isso.  Já vi com esses meus olhos incansáveis  Idéias explodirem como flores  Entre réstias de sol já vi castelos  Matemáticos ruírem como cartas  Sistemas filosóficos perderem  A lógica do dia para a noite  Obras de arte nascentes desviarem-se  Do rumo da criação ante uma axila  Suada, e muitos santos se danarem  Sob a ação salutar do ultravioleta.  Mas pra quem tem o hábito da noite  Quem vive em intimidade com o silêncio  Quem sabe ouvir a música da treva  Quando na treva reproduz-se a vida  Para esse, a cidade se oferece  Num clima universal de eternidade  No contraponto do mover do mar  E no mutismo milenar da pedra  Em sua infinidade de infinitos  Para esse os Dois Irmãos contam uma história  Fantástica, de forças irrompendo  Da terra e se dispondo em formas súbitas  Viúva! Pão de Açúcar! Corcovado!  E mais ao sul, sarcófago do sol  A mesa imensa onde esse pode ver  Se acaso souber ver, no fim do dia  A silhueta do homem primitivo  (A mesma que ainda hoje, transformada  Passa sobre o mosaico da Avenida)  E até quem sabe, natural torcida  Assistindo de sua arquibancada  As serpentes do mar em luta ignara  Movendo maremotos, à porfia  No estádio natural da Guanabara.