O sacrifício do vinho

Vinicius de Moraes

Paris Contra o crepúsculo  O vinho assoma, exulta, sobreleva  Muda o cristal da tarde em rubra pompa  Ganha som, ganha sangue, ganha seios  Contra o crepúsculo o vinho  Menstrua a tarde.  Ah, eu quero beber do vinho em grandes haustos  Eu quero os longos dedos líquidos  Sobre meus olhos, eu quero  A úmida língua...  O céu da minha boca  É uma cúpula imensa para a acústica  Do vinho, e seu eco de púrpura...  O cantochão do vinho  Cresce, vermelho, entre muralhas súbitas  Carregado de incenso e paciência.  As sinetas litúrgicas  Erguern a taça ardente contra a tarde  E o vinho, transubstanciado, bate asas  Voa para o poente  O vinho...  Uma coisa é o vinho branco  O primeiro vinho, linfa da aurora impúbere  Sobre a morte dos peixes.  Mas contra a noite ei-lo que se levanta  Varado pelas setas do poente  Transverberado, o vinho...  E o seu sangue se espalha pelas ruas  Inunda as casas, pinta os muros, fere  As serpentes do tédio; dentro  Da noite o vinho  Luta como um Laocoonte  O vinho...  Ah, eu quero beijar a boca moribunda  Fechar os olhos pânicos  Beber a áspera morte  Do vinho...