UMA PÁGINA DE ESCOLA REALISTA

Castro Alves

drama cômico em quatro palavras A tragédia me faz rir, a comédia me faz chorar, E o drama? Nem rir, nem chorar... (Pensamento de CARNIOLI) CENÁRIO A alcova é fria e pequena Abrindo sobre um jardim. A tarde frouxa e serena Já desmaia para o fim. No centro um leito fechado Deixa o longo cortinado Sobre o tapete rolar... Há, nas jarras deslumbrantes, Camélias frias, brilhantes, Lembrando a neve polar. Livros esparsos por terra, Uma harpa caída além; E essa tristeza, que encerra O asilo, onde sofre alguém. Fitas, máscaras e flores Não sei que vagos odores Falam de amor e prazer. Além da frouxa penumbra Um vulto incerto ressumbra — O vulto de uma mulher. Vous, qui volez là-bas, légères hirondelles Dites-moi, dites-moi, porquoi vais-je mourir! MUSSET MÁRIO (no leito) É tarde! É tarde! Abri-me estas cortinas Deixai que a luz me acaricie a fronte!... Ó sol, ó noivo das regiões divinas, Suspende um pouco a luz neste horizonte! SILVIA (abrindo a janela) Da noite o frio vento te regela o mórbido suor... MÁRIO Oh! que me importa? A tarde doura-me o suor da fronte... — Último louro desta vida morta! Crepusclo! mocidade! natureza! Inundai de fulgor meu dia extremo... Quero banhar-me em vagas de harmonia, Como no lago se mergulha o remo! E que amores que sonham as esferas! A brisa é de volúpia um calafrio. A estrela sai das folhas do infinito, Sai dos musgos o verme luzidio ... Tudo que vive, que palpita e sente Chama o par amoroso para a sombra. O pombo arrula — preparando o ninho, A abelha zumbe — preparando a alfombra. As trevas rolam como as tranças negras, Que a Andaluza desmancha em mago enleio: E entre rendas sutis surge medrosa A lua plena, qual moreno seio. Abre-se o ninho... o cálice... o regaço... Anfitrite, corando, aguarda o noivo... (Longa pausa) E tu também esperas teu esposo, Ó morte! ó moça, que engrinalda o goivo! SÍLVIA (a meia voz, acompanhando-se na guitarra) Dizem as moças galantes Que as rolas são tão constantes ... Pois será? Que morrendo-lhe os amantes, Morrem de fome, arquejantes, Quem dirá? Dizem sábios arrogantes Que nestas terras distantes, Não por cá, Sobre piras fumegantes Morrem viúvas constantes, Pois será? Não creio nos navegantes Nem nas histórias galantes, Que há por lá. Fome e fogueiras brilhantes Cá não há... Mas inda morrem amantes De saudades lacerantes Quem dirá? (Aos últimos arpejos cai-lhe uma lágrima.) MÁRIO (vendo-a chorar) Sílvia! Deixa rolar sobre a guitarra, Da lágrima a harmonia peregrina! Sílvia! cantando — és a mulher formosa! Silvia! chorando — és a mulher divina! Oh! lágrimas e pérolas! - aljofares Que rebentais no interno cataclismo, Do oceano — este dédalo insondável! Do coração — este profundo abismo! Sílvia! dá-me a beber a gota dágua, Nessa pálpebra roxa como o lírio... Como lambe a gazela o brando orvalho Nas largas folhas do deserto assírio. E quando estalma desdobrando as asas Entrar do céu na região serena, Como uma estrela eu levarei nos dedos Teu pranto sideral, ó Madalena! ... Sílvia (tem-se ajoelhado aos pés do leito) Meus prantos sirvam apenas Pra umedecer teus cabelos, Como da corça nos velos Fresco orvalho a resvalar! Pra molhar a flor, que aspires, Rolem prantos de meus olhos, Pra atravessar os escolhos Meus prantos manda rolar!... Meus prantos sirvam apenas Pra a terra, em que tu pisares, Pra a sede, em que te abrasares, Terás meu sangue, Senhor! Meus prantos são óleo humilde Que eu derramo a tuas plantas... (Mário estende-lhe os braços) Mas se acaso me levantas Meus prantos dizem-te amor!... Mário (tendo-a contra o seio) Sentir que a vida vai fugindo aos poucos Como a luz, que desmaia no ocidente... E boiar sobre as ondas do sepulcro, Como Ofélia nas águas da corrente... Sentir o sangue espanadar do peito — Licor de morte — sobre a boca fria, E meu lábio enxugar nos teus cabelos, Como Rolla nas tranças de Maria. De teus braços fazer o diadema De minha vida, que desmaia insana, Esquecer o passado em teu regaço, Como Byron aos pés da Italiana; Em teu lábio molhado e perfumoso O licor entornar de minha vida... Escutar-te nas vascas da agonia, Como Fausto as canções de Margarida! Eis como eu quero — na embriaguez da morte... Do banquete no chão pender a fronte... Inda a taça empunhando de teus beijos Sob as rosas gentis de Anacreonte!... (A noite tem descido pouco a pouco, o luar penetrando pela alcova alumia o grupo dos amantes) SÍLVIA Que palidez, meu poeta, Se estende na face tua!... MÁRIO São os raios descorados, Os alvos raios da lua! SÍLVIA Mas um suor de agonia Teu peito ardente tressua ... MÁRIO São os orvalhos, que descem Ao frio clarão da lua. SÍLVIA Que mancha é esta sangrenta, Que no teu lábio flutua? MÁRIO São as sombras de uma nuvem Que tolda a face da lua! SÍLVIA Como teus dedos esfriam Sobre minha espádua nua! ... MÁRIO (distraído) Não vês um anjo, que desce, No frouxo clarão da lua? SÍLVIA Mário? Não vês quem te chama?... Tua amante... Sílvia... a tua... MÁRIO (desmaiando) É a morte que me leva Num frio raio da lua! ... (O poeta cai semimorto sobre o leito. No espasmo sua mão contraída prende uma trança da moça.) SÍLVIA Teus brancos dedos fecharam De meu cabelo a madeixa, Tua amante não se queixa... Bem vês... cativa ficou. Mas não se prende o desejo Que nalma acaso se aninha!... Nunca viste a andorinha, Que alegre o fio quebrou? (Ouve-se um relógio dar horas.) Já! tão tarde! E embalde tento Abrir-te os dedos fechados... Como frios cadeados, Que o teu amor me lançou. Porém se aqui me cativas Minhalma foge-te asinha... Nunca viste a andorinha, Que alegre o fio quebrou! (Debruça-se a escrever numa carteira.) "Paulo! Vem à meia-noite... Mário morre! Mário expira! Vem que minha alma delira E embalde cativa estou. . . " MÁRIO (que tem lido por cima de seu ombro) Sílvia! a morte abre-me os dedos, És livre, Sílvia... caminha! (morrendo) Minhalma é como a andorinha, Que alegre o fio quebrou.