O Vôo do Gênio

Castro Alves

À ATRIZ EUGÊNIA CÂMARA Um dia, em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas — nos vergéis da adolescência, Sem luz destrela — pelo céu do amor; Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte, As vezes toca a solitária flor. E disse então: "Quem és, pálido arcanjo! Tu, que o poeta vens erguer do pego? Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol? Quem és tu? Quem és tu?" — "Eu sou o gênio", Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por croas o arrebol". "Onde me levas, pois?.. . " — "Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia — lagos mais azuis. . . " E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o vôo dáguia não se eleva... Abaixo — via a terra — abismo em treva! Acima — o firmamento — abismo em luz! "Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!" — "Não, poeta, é o vedado paraíso, Onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo o seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, Onde eu tenho o condão de um gênio infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o Senhor beijou. . . " "Onde me levas mais, anjo divino?" — "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas, O canto das esferas namoradas, Quando eu encho de amor o azul dos céus. Quero levar-te das paixões nos mares. Quero levar-te a dédalos profundos, Onde refervem sóis... e céus... e mundos... Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é rneu... "Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia: A brisa morna, a sombra do arvoredo, A linfa clara, que murmura a medo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar. Ó princesa, a razão já se me perde, És a sereia da encantada Sila. Anjo, que transformaste-te em Dalila, Sansão de novo te quisera amar! "Porém não paras neste vôo errante! A que outros mundos elevar-me tentas? Já não sinto o soprar de auras sedentas, Nem bebo a taça de um fogoso amor. Sinto que rolo em báratros profundos... Já não tens asas, águia da Tessália, Maldições sobre ti... tu és Onfália, Ninguém te ergue das trevas e do horror. "Porém silêncio! No maldito abismo, Onde caí contigo criminosa, Canta uma voz, sentida e maviosa, Que arrependida sobe a Jeová! Perdão! Perdão! Senhor, pra quem soluça, Talvez seja algum anjo peregrino... ... Mas não! inda eras tu, gênio divino, Também sabes chorar, como Eloá! "Não mais, ó serafim! suspende as asas! Que, através das estrelas arrastado, Meu ser arqueja louco, deslumbrado, Sobre as constelações e os céus azuis. Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo Mergulhei das paixões nas vagas cérulas... Mas nos meus dedos — já não cabem — pérolas — Mas na minhalma — já não cabe — luz!...