O bom ladrão

Vinicius de Moraes

São horas, inclina o teu doloroso rosto sobre a visão da velha paisagem quieta Passeia o teu mais fundo olhar sobre os brancos horizontes onde há imagens perdidas Afaga num derradeiro gesto os cabelos de tuas irmãs chorando Beija uma vez mais a fronte materna. São horas! Grava na última lágrima toda a desolação vivida Liberta das cavas escuras, ó grande bandido, a tua alma, trágica esposa E vai — é longe, é muito longe! — talvez toda uma vida, talvez nunca... Foi outrora... Dizem que primeiro ele andou de mão em mão e muito poucos o quiseram E que por ele foi transformada a face da vida e que de medo o enterraram E que desde então ninguém se atreve a penetrar a terra bendita. É a suprema aventura — vai! ele está lá... — é tão maior que Monte-Cristo! Está lá voltado paradamente para as estrelas claras Aberto para a pouca fé dos teus olhos Palpável para a insaciedade dos teus dedos. Está lá, o grande tesouro, num campo silencioso como os teus passos Sob uma laje bruta como a tua inteligência Numa cova negra como o teu destino humano. No entanto ele é luz e beleza e glória E se tu o tocares, a manhã se fará em todos os abismos Rompe a terra com as mesmas mãos com que rompeste a carne Penetra a profundidade da morte, ó tu que jogas a cada instante com a tua vida E se ainda assim te cegar a dúvida, toca-o, mergulha nele o rosto sangrento Porque ele é teu nesse momento, tu poderás levá-lo para sempre Poderás viver dele e só dele porque tu és dele na eternidade. Porém será muito ouro para as tuas arcas... Será, deixa que eu te diga, muito ouro para as tuas arcas... Olha! a teus pés Jerusalém se estende e dorme o sono dos pecadores Além as terras se misturam como lésbicas esquecidas Mais longe ainda, no teu país, as tuas desoladas te pranteiam Volta. Traze o bastante para a consolação dos teus aflitos Tua alegria será maior porque há ulcerados nos caminhos Há mulheres perdidas chorando nas portas Há judeus a espoliar pelas tavernas Volta... Há tanto ouro no campo-santo Que tua avareza seria vã para contê-lo Volta... Ensina à humanidade a roubar o arrependimento Porque todo o arrependimento será pouco para a culpa de ter roubado... Porém tu serás o bom ladrão, tu estarás nas chagas do peito... ---