O nascimento do homem

Vinicius de Moraes

I E uma vez, quando ajoelhados assistíamos à dança nua das auroras Surgiu do céu parado como uma visão de alta serenidade Uma branca mulher de cujo sexo a luz jorrava em ondas E de cujos seios corria um doce leite ignorado. Oh, como ela era bela! era impura — mas como ela era bela! Era como um canto ou como uma flor brotando ou como um cisne Tinha um sorriso de praia em madrugada e um olhar evanescente E uma cabeleira de luz como uma cachoeira em plenilúnio. Vinha dela uma fala de amor irresistível Um chamado como uma canção noturna na distância Um calor de corpo dormindo e um abandono de onda descendo Uma sedução de vela fugindo ou de garça voando. E a ela fomos e a ela nos misturamos e a tivemos... Em véus de neblina fugiam as auroras nos braços do vento Mas que nos importava se também ela nos carregava nos seus braços E se o seu leite sobre nós escorria e pelo céu? Ela nos acolheu, estranhos parasitas, pelo seu corpo desnudado E nós a amamos e defendemos e nós no ventre a fecundamos Dormíamos sobre os seus seios apojados ao clarão das tormentas E desejávamos ser astros para inda melhor compreendê-la. Uma noite o horrível sonho desceu sobre as nossas almas sossegadas A amada ia ficando gelada e silenciosa — luzes morriam nos seus olhos... Do seu peito corria o leite frio e ao nosso amor desacordada Subiu mais alto e mais além, morta dentro do espaço. Muito tempo choramos e as nossas lágrimas inundaram a terra Mas morre toda a dor ante a visão dolorosa da beleza Ao vulto da manhã sonhamos a paz e a desejamos Sonhamos a grande viagem através da serenidade das crateras. Mas quando as nossas asas vibraram no ar dormente Sentimos a prisão nebulosa de leite envolvendo as nossas espécies A Via Láctea — o rio da paixão correndo sobre a pureza das estrelas A linfa dos peitos da amada que um dia morreu. Maldito o que bebeu o leite dos seios da virgem que não era mãe mas era amante Maldito o que se banhou na luz que não era pura mas ardente Maldito o que se demorou na contemplação do sexo que não era calmo mas amargo O que beijou os lábios que eram como a ferida dando sangue! E nós ali ficamos, batendo as asas libertas, escravos do misterioso plasma Metade anjo, metade demônio, cheios da euforia do vento e da doçura do cárcere remoto Debruçados sobre a terra, mostrando a maravilhosa essência da nossa vida Lírios, já agora turvos lírios das campas, nascidos da face lívida da morte. II Mas vai que havia por esse tempo nas tribos da terra Estranhas mulheres de olhos parados e longas vestes nazarenas Que tinham o plácido amor nos gestos tristes e serenos E o divino desejo nos frios lábios anelantes. E quando as noites estelares fremiam nos campos sem lua E a Via Láctea como uma visão de lágrimas surgia Elas beijavam de leve a face do homem dormindo no feno E saíam dos casebres ocultos, pelas estradas murmurantes. E no momento em que a planície escura beijava os dois longínquos horizontes E o céu se derramava iluminadamente sobre a várzea Iam as mulheres e se deitavam no chão paralisadas As brancas túnicas abertas e o branco ventre desnudado. E pela noite adentro elas ficavam, descobertas O amante olhar boiando sobre a grande plantação de estrelas No desejo sem fim dos pequenos seres de luz alcandorados Que palpitavam na distância numa promessa de beleza. E tão maternalmente os desejavam e tão na alma os possuíam Que às vezes desgravitados uns despenhavam-se no espaço E vertiginosamente caíam numa chuva de fogo e de fulgores Pelo misterioso tropismo subitamente carregados. Nesse instante, ao delíquio de amor das destinadas Num milagre de unção, delas se projetava à altura Como um cogumelo gigantesco um grande útero fremente Que ao céu colhia a estrela e ao ventre retornava. E assim pelo ciclo negro da pálida esfera através do tempo Ao clarão imortal dos pássaros de fogo cruzando o céu noturno As mulheres, aos gritos agudos da carne rompida de dentro Iam se fecundando ao amor puríssimo do espaço. E às cores da manhã elas voltavam vagarosas Pelas estradas frescas, através dos vastos bosques de pinheiros E ao chegar, no feno onde o homem sereno inda dormia Em preces rituais e cantos místicos velavam. Um dia mordiam-lhes o ventre, nas entranhas — entre raios de sol vinha a tormenta... Sofriam... e ao estridor dos elementos confundidos Deitavam à terra o fruto maldito de cuja face transtornada As primeiras e mais tristes lágrimas desciam. Tinha nascido o poeta. Sua face é bela, seu coração é trágico Seu destino é atroz; ao triste materno beijo mudo e ausente Ele parte! Busca ainda as viagens eternas da origem Sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência. ---