Lágrima de Sangues

Álvares de Azevedo

Ao pé das aras no clarão dos círios Eu te devera consagrar meus dias; Perdão, meu Deus! perdão Se neguei meu Senhor nos meus delírios E um canto de enganosas melodias Levou meu coração! Só tu, só tu podias o meu peito Fartar de imenso amor e luz infinda E uma Saudade calma; Ao sol de tua fé doirar meu leito E de fulgores inundar ainda A aurora na minhalma. Pela treva do espírito lancei-me, Das esperanças suicidei-me rindo... Sufoquei-as sem dó. No vale dos cadáveres sentei-me E minhas flores semeei sorrindo Dos túmulos no pó. Indolente Vestal, deixei no templo A pira se apagar — na noite escura O meu gênio descreu. Voltei-me para a vida... só contemplo A cinza da ilusão que ali murmura: Morre! — tudo morreu! Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias À alma que se perdeu bradar de novo: Ressurge-te ao amor! Malicento, da minhas agonias Eu deixaria as multidões do povo Para amar o Senhor! Do leito aonde o vício acalentou-me O meu primeiro amor fugiu chorando. Pobre virgem de Deus! Um vendaval sem norte arrebatou-me, Acordei-me na treva... profanando Os puros sonhos meus! Oh! se eu pudesse amar!... — É impossível! Mão fatal escreveu na minha vida; A dor me envelheceu. O desespero pálido, impassível Agoirou minha aurora entristecida, De meu astro descreu. Oh! se eu pudesse amar! Mas não: agora Que a dor emurcheceu meus breves dias, Quero na cruz sangrenta Derramá-los na lágrima que implora, Que mendiga perdão pela agonia Da noite lutulenta! Quero na solidão — nas ermas grutas A tua sombra procurar chorando Com meu olhar incerto: As pálpebras doridas nunca enxutas Queimarei... teus fantasmas invocando No vento do deserto. De meus dias a lâmpada se apaga: Roeram meu viver mortais venenos; Curvo-me ao vento forte. Teu fúnebre clarão que a noite alaga, Como a estrrla oriental me guie ao menos Té o vale da morte! No mar dos vivos o cadáver bóia — A lua é descorada como um crânio, Este sol não reluz: Quando na morte a pálpebra se engóia, O anjo se acorda em nós — e subitâneo Voa ao mundo da luz! Do val de Josafá pelas gargantas Uiva na treva o temporal sem norte E os fantasmas murmuram... Irei deitar-me nessas trevas santas, Banhar-me na frieza lustral da morte Onde as almas se apuram! Mordendo as clinas do corcel da sombra, Sufocando, arquejante passarei Na noite do infinito. Ouvirei essa voz que a treva assombra, Dos lábios de minhalma entornarei O meu cântico aflito! Flores cheias de aroma e de alegria, Por que na primavera abrir cheirosas E orvalhar-vos abrindo? As torrentes da morte vêm sombrias, Hão de amanhã nas águas tenebrosas Vos rebentar bramindo. Morrer! morrer! É voz das sepulturas! Como a lua nas salas festivais A morte em nós se estampa! E os pobres sonhadores de venturas Roxeiam amanhã nos funerais E vão rolar na campa! Que vale a glória, a saudação que enleva Dos hinos triunfais na ardente nota, E as turbas devaneia? Tudo isso é vão, e cala-se na treva — Tudo é vão, como em lábios de idiota Cantiga sem idéia. Que importa? quando a morte se descarna, A esperança do céu flutua e brilha Do túmulo no leito: O sepulcro é o ventre onde se encama Um verbo divinal que Deus perfilha E abisma no seu peito! Não chorem! que essa lágrima profunda Ao cadáver sem luz não dá conforto... Não o acorda um momento! Quando a treva medonha o peito inunda, Derrama-se nas pálpebras do morto Luar de esquecimento! Caminha no deserto a caravana, Numa noite sem lua arqueja e chora... O termo... é um sigilo! O meu peito cansou da vida insana; Da cruz à sombra, junto aos meus, agora Eu dormirei tranqüilo! Dorme ali muito amor... muitas amantes, Donzelas puras que eu sonhei chorando E vi adormecer. Ouço da terra cânticos errantes, E as almas saudosas suspirando, Que falam em morrer... Aqui dormem sagradas esperanças, Almas sublimes que o amor erguia... E gelaram tão cedo! Meu pobre sonhador! aí descansas, Coração que a existência consumia E roeu um segredo! ... Quando o trovão romper as sepulturas, Os crânios confundidos acordando No lodo tremerão. No lodo pelas tênebras impuras Os ossos estalados tiritando Dos vales surgirão! Como rugindo a chama encarcerada Dos negros flancos do vulcão rebenta Goltejando nos céus, Entre nuvem ardente e trovejada Minhalma se erguerá, fria, sangrenta, Ao trono de meu Deus... Perdoa, meu Senhor! O errante crente Nos desesperos em que a mente abrasas Não o arrojes plo crime! Se eu fui um anjo que descreu demente E no oceano do mal rompeu as asas, Perdão! arrependi-me!