Ao Romper DAlva

Castro Alves

Página feia, que ao futuro narra Dos homens de hoje a lassidão, a história Com o pranto escrita, com suor selada Dos párias misérrimos do mundo! ... Página feia, que eu não possa altivo Romper, pisar-te, recalcar, punir-te... PEDRO CALASANS Sigo só caminhando serra acima, E meu cavalo a galopar se anima Aos bafos da manhã. A alvorada se eleva do levante, E, ao mirar na lagoa seu semblante, Julga ver sua irmã. As estrelas fugindo aos nenufares, Mandam rútilas pérolas dos ares De um desfeito colar. No horizonte desvendam-se as colinas, Sacode o véu de sonhos de neblinas A terra ao despertar. Tudo é luz, tudo aroma e murmurio. A barba branca da cascata o rio Faz orando tremer. No descampado o cedro curva a frente, Folhas e prece aos pés do Onipotente Manda a lufada erguer. Terra de Santa Cruz, sublime verso Da epopéia gigante do universo, Da imensa criação. Com tuas matas, ciclopes de verdura, Onde o jaguar, que passa na espessura, Roja as folhas no chão; Como és bela, soberba, livre, ousada! Em tuas cordilheiras assentada A liberdade está. A púrpura da bruma, a ventania Rasga, espedaça o cetro que serguia Do rijo piquiá. Livre o tropeiro toca o lote e canta A lânguida cantiga com que espanta A saudade, a aflição. Solto o ponche, o cigarro fumegando Lembra a serrana bela, que chorando Deixou lá no sertão. Livre, como o tufão, corre o vaqueiro Pelos morros e várzea e tabuleiro Do intrincado cipó. Que importa’os dedos da jurema aduncos? A anta, ao vê-los, oculta-se nos juncos, Voa a nuvem de pó. Dentre a flor amarela das encostas Mostra a testa luzida, as largas costas No rio o jacaré. Catadupas sem freios, vastas, grandes, Sois a palavra livre desses Andes Que além surgem de pé. Mas o que vejo? É um sonho!... A barbaria Erguer-se neste séclo, à luz do dia. Sem pejo se ostentar. E a escravidão — nojento crocodilo Da onda turva expulso lá do Nilo — Vir aqui se abrigar! ... Oh! Deus! não ouves dentre a imensa orquesta Que a natureza virgem manda em festa Soberba, senhoril, Um grito que soluça aflito, vivo, O retinir dos ferros do cativo, Um som discorde e vil? Senhor, não deixes que se manche a tela Onde traçaste a criação mais bela De tua inspiração. O sol de tua glória foi toldado... Teu poema da América manchado, Manchou-o a escravidão. Prantos de sangue — vagas escarlates — Toldam teus rios — lúbricos Eufrates Dos servos de Sião. E as palmeiras se torcem torturadas, Quando escutam dos morros nas quebradas O grito de aflição. Oh! ver não posso este labéu maldito! Quando dos livres ouvirei o grito? Sim... talvez amanhã. Galopa, meu cavalo, serra acima! Arranca-me a este solo. Eia! te anima Aos bafos da manhã!