Musa ensina-me o canto

Sophia de Mello Breyner Andresen

Musa ensina-me o canto Venerável e antigo O canto para todos Por todos entendido Musa ensina-me o canto O justo irmão das coisas Incendiador da noite E na tarde secreto Musa ensina-me o canto Em que eu mesma regresso Sem demora e sem pressa Tornada planta ou pedra Ou tornada parede Da casa primitiva Ou tornada o murmúrio Do mar que a cercava (Eu me lembro do chão De madeira lavada E do seu perfume Que atravessava) Musa ensina-me o canto Onde o mar respira Coberto de brilhos Musa ensina-me o canto Da janela quadrada E do quarto branco Que eu possa dizer como A tarde ali tocava Na mesa e na porta No espelho e no corpo E como os rodeava Pois o tempo me corta O tempo me divide O tempo me atravessa E me separa viva Do chão e da parede Da casa primitiva Musa ensina-me o canto Venerável e antigo para prender o brilho Dessa manhã polida Que poisava na duna Docemente os seus dedos E caiava as paredes Da casa limpa e branca Musa ensina-me o canto Que me corta a garganta