Balada do morto vivo

Vinicius de Moraes

Tatiana, hoje vou contar O caso do Inglês espírito Ou melhor: do morto vivo. Diz que mesmo sucedeu E a dona protagonista Se quiser pode ser vista No hospício mais relativo Ao sítio onde isso se deu. Diz também que é muito raro Que por mais cético o ouvinte Não passe uma noite em claro: Sendo assim, por conseguinte Se quiser diga que eu paro. Se achar que é mentira minha Olhe só para essa pele Feito pele de galinha... Dou início: foi nos faustos Da borracha do Amazonas. Às margens do Rio Negro Sobre uma balsa habitável Um dia um casal surgiu Ela chamada Lunalva Formosa mulher de cor Ele por alcunha Bill Um Inglês comercial Agente da “Rubber Co.” Mas o fato é que talvez Por ter nascido na Escócia E ser portanto escocês Ninguém de Bill o chamava Com exceção de Lunalva Mas simplesmente de Inglês. Toda manhã que Deus dava Lunalva com muito amor Fazia um café bem quente Depois o Inglês acordava E o homem saía contente Fumegando o seu cachimbo Na sua lancha a vapor. Toda a manhã que Deus dava. Somente com o sol-das-almas O Inglês à casa voltava. Que coisa engraçada: espia Como só de pensar nisso Meu cabelo se arrepia... Um dia o Inglês não voltou. A janta posta, Lunalva Até o cerne da noite Em pé na porta esperou. Uma eu lhe digo, Tatiana: A lua tinha enloucado Nesse dia da semana... Era uma lua tão alva Era uma lua tão fria Que até mais frio fazia No coração de Lunalva. No rio negroluzente As árvores balouçantes Pareciam que falavam Com seus ramos tateantes Tatiana, do incidente. Um constante balbucio Como o de alguém muito em mágoa Parecia vir do rio. Lunalva, num desvario Não tirava os olhos da água. Às vezes, dos igapós Subia o berro animal De algum jacaré feroz Praticando o amor carnal Depois caía o silêncio... E então voltava o cochicho Da floresta, entrecortado Pelo rir mal-assombrado De algum mocho excomungado Ou pelo uivo de algum bicho. Na porta em luzcancarada Só Lunalva lunalvada. Súbito, ó Deus justiceiro! Que é esse estranho ruído? Que é esse escuro rumor? Será um sapo-ferreiro Ou é o moço meu marido Na sua lancha a vapor? Na treva sonda Lunalva... Graças, meu Pai! Graças mil! Aquele vulto... era o Bill A lancha... era a Arimedalva! “Ah, meu senhor, que desejo De rever-te em casa em paz... Que frio que está teu beijo! Que pálido, amor, que estás!” Efetivamente o Bill Talvez devido à friagem Que crepitava do rio Voltara dessa viagem Muito branco e muito frio. “Tenho nada, minha nega Senão fome e amor ardente Dá-me um trago de aguardente Traz o pão, passa manteiga! E aproveitando do ensejo Me apaga esse lampião Estou morrendo de desejo Amemos na escuridão!” Embora estranhando um pouco A atitude do marido Lunalva tira o vestido Semilouca de paixão. Tatiana, naquele instante Deitada naquela cama Lunalva se surpreendeu Não foi mulher, foi amante Agiu que nem mulher-dama Tudo o que tinha lhe deu. No outro dia, manhãzinha Acordando estremunhada Lunalva soltou risada Ao ver que não estava o Bill. Muito Lunalva se riu Vendo a mesa por tirar. Indo se mirar ao espelho Lunalva mal pôde andar De fraqueza no joelho. E que olhos pisados tinha! Não rias, pobre Lunalva Não rias, morena flor Que a tua agora alegria Traz a semente do horror! Eis senão quando, no rio Um barulho de motor. À porta Lunalva voa A tempo de ver chegando Um bando de montarias E uns cabras dentro remando Tudo isso acompanhando A lancha a vapor do Bill Com um corpo estirado à proa. Tatiana, põe só a mão: Escuta como dispara De medo o meu coração. E frente da balsa para A lancha com o corpo em cima Os caboclos se descobrem Lunalva que se aproxima Levanta o pano, olha a cara E dá um medonho grito. “Meu Deus, o meu Bill morreu! Por favor me diga, mestre O que foi que aconteceu?” E o mestre contou contado: O Inglês caíra no rio Tinha morrido afogado. Quando foi?... ontem de tarde. Diz — que ninguém esqueceu A gargalhada de louca Que a pobre Lunalva deu. Isso não é nada, Tatiana: Ao cabo de nove luas Um filho varão nasceu. O filho que ela pariu Diz-que, Tatiana, diz-que era A cara escrita do Bill: A cara escrita e escarrada... Diz-que até hoje se escuta O riso da louca insana No hospício, de madrugada. É o que lhe digo, Tatiana...