Balada negra

Vinicius de Moraes

Éramos meu pai e eu  E um negro, negro cavalo  Ele montado na sela,  Eu na garupa enganchado.  Quando? eu nem sabia ler  Por quê? saber não me foi dado  Só sei que era o alto da serra  Nas cercanias de Barra.  Ao negro corpo paterno  Eu vinha muito abraçado  Enquanto o cavalo lerdo  Negramente caminhava.  Meus olhos escancarados  De medo e negra friagem  Eram buracos na treva  Totalmente impenetrável.  Às vezes sem dizer nada  O grupo eqüestre estacava  E havia um negro silêncio  Seguido de outros mais vastos.  O animal apavorado  Fremia as ancas molhadas  Do negro orvalho pendente  De negras, negras ramadas.  Eu ausente de mim mesmo  Pelo negrume em que estava  Recitava padre-nossos  Exorcizando os fantasmas.  As mãos da brisa silvestre  Vinham de luto enluvadas  Acarinhar-me os cabelos  Que se me punham eriçados.  As estrelas nessa noite  Dormiam num negro claustro  E a lua morta jazia  Envolta em negra mortalha.  Os pássaros da desgraça  Negros no escuro piavam  E a floresta crepitava  De um negror irremediável.  As vozes que me falavam  Eram vozes sepulcrais  E o corpo a que eu me abraçava  Era o de um morto a cavalo.  O cavalo era um fantasma  Condenado a caminhar  No negro bojo da noite  Sem destino e a nunca mais.  Era eu o negro infante  Condenado ao eterno báratro  Para expiar por todo o sempre  Os meus pecados da carne.  Uma coorte de padres  Para a treva me apontava  Murmurando vade-retros  Soletrando breviários.  Ah, que pavor negregado  Ah, que angústia desvairada  Naquele túnel sem termo  Cavalgando sem cavalo!  Foi quando meu pai me disse:  - Vem nascendo a madrugada…  E eu embora não a visse  Pressenti-a nas palavras  De meu pai ressuscitado  Pela luz da realidade.  E assim foi. Logo na mata  O seu rosa imponderável  Aos poucos se insinuava  Revelando coisas mágicas.  A sombra se desfazendo  Em entretons de cinza e opala  Abria um claro na treva  Para o mundo vegetal.  O cavalo pôs-se esperto  Como um cavalo de fato  Trotando de rédea curta  Pela úmida picada.  Ah, que doçura dolente  Naquela aurora raiada  Meu pai montando na frente  Eu na garupa enganchado!  Apertei-o fortemente  Cheio de amor e cansaço  Enquanto o bosque se abria  Sobre o luminoso vale...  E assim fui-me ao sono, certo  De que meu pai estava perto  E a manhã se anunciava.  Hoje que conheço a aurora  E sei onde caminhar  Hoje sem medo da treva  Sem medo de não me achar  Hoje que morto meu pai  Não tenho em quem me apoiar  Ah, quantas vezes com ele  Vou ao túmulo deitar  E ficamos cara a cara  Na mais doce intimidade  Certos que a morte não leva:  Certos de que toda treva  Tem a sua madrugada. Balada Originalmente ligada à música e à dança, a balada despontou como expressão literária no século XIII, entre os povos de fala germânica. No século XV, apareceram baladas literárias sem qualquer vinculação com a música, como as do francês François Villon, em oitavas, exibindo características totalmente originais. Nos dois séculos seguintes, a balada praticamente caiu em desuso, voltando a desperetar interesse no século XVIII, quando despontou em meio aos escritores como um tesouro popular a ser redescoberto e valorizado. Um marco fundamental foi a publicação, em 1756, na Inglaterra, das Reliques of Ancient English Poetry (Relíquias da antiga poesia inglesa) , uma compilação levada a cabo pelo bispo Thomas Percy. Logo os românticos também se voltaram para a balada, nela procurando a espontaneidade musical e o acento popular. Nomes como Schiller, Heine e Victor Hugo deram nova dimensão ao gênero. Alguns compositores do período, especialmente Chopin e Brahms aludiram à forma lírica dando a algumas de suas peças o nome de "balada". O modelo francês foi o mais adotado: três estâncias de oito versos (repetindo-se sempre o último verso em cada uma delas), rimas em esquema ababacac, e um ofertório de quatro versos com rimas acac. No Brasil, os poetas parnasianos cultivaram a balada segundo a norma francesa, atraídos pela dificuldade formal. Já os poetas modernos adotaram o nome balada no título de alguns de seus poemas sem qualquer obediência a uma forma fixa, apenas chamando a atenção para a musicalidade dos versos ou para o seu conteúdo narrativo. Bons exemplos são Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, tendo sido este último o que mais se dedicou ao gênero, chegando a seu ponto alto no livro Poemas, sonetos e baladas.