Exumação de Mário de Andrade

Vinicius de Moraes

No 17º ano da sua morte e no 40º do seu nascimento  Na semana de Arte Moderna  Minha casa de Saint Andrews Place.  Duas da manhã. Abro uma gaveta  Com um gesto sem finalidade  E dou com o retrato do poeta  Me olhando, Mário de Andrade.  Seus olhos nem por um segundo  Piscam. O poeta me encara  E eu vejo pela sua cara  Que o poeta quer ser exumado  Daquela gaveta, desde muito.  Tiro-o de lá. Com mão amiga  Limpo a poeira que lhe embaça  O rosto e suja-lhe a camisa  E o poeta como que acha graça.  Busco um lugar onde instalá-lo  Na minha pequena sala fria  Essa sala tão sem poesia  Onde me encontro todo dia  E onde me sento e onde me calo.  Mas não acho. Ponho-o à minha frente  Sobre a mesa, sentindo a vertigem  Da sensação da forma virgem  Que assume de súbito o ambiente.  No papel branco palpitante  Das moléculas da poesia  A minha mão psicografa  O antigo nome de Maria.  E na sala transverberada  Pelo mistério da presença  Vai se corporificando imensa  A humana forma macerada.  Não tenho medo; mas meus pêlos  Se eriçam, na barba e no braço  Sinto pesar o puro espaço  Às mãos do poeta em meus cabelos.  Depois o toque cessa. Deixo  O poeta a gosto, para que ande  Por ali tudo, esmiuçando.  Depois ouço o som do piano  E olho: só vejo a vasta fronte  Os óculos e o queixo grande  Do poeta, se desincorporando.  E fico só: só como um vivo  Cheio de angústia e de saudade  E corro à porta, e olhando aflito  O silêncio, murmuro empós o bom amigo:  - Volte sempre, Mário de Andrade...  Los Angeles, outubro de 1946  Petrópolis, fevereiro de 1962 Los Angeles, outubro de 1946 Petrópolis, fevereiro de 1962