Feijoada à minha moda

Vinicius de Moraes

Amiga Helena Sangirardi  Conforme um dia eu prometi  Onde, confesso que esqueci  E embora - perdoe - tão tarde  (Melhor do que nunca!) este poeta  Segundo manda a boa ética  Envia-lhe a receita (poética)  De sua feijoada completa.  Em atenção ao adiantado  Da hora em que abrimos o olho  O feijão deve, já catado  Nos esperar, feliz, de molho.  E a cozinheira, por respeito  À nossa mestria na arte  Já deve ter tacado peito  E preparado e posto à parte  Os elementos componentes  De um saboroso refogado  Tais: cebolas, tomates, dentes  De alho - e o que mais for azado  Tudo picado desde cedo  De feição a sempre evitar  Qualquer contato mais... vulgar  Às nossas nobres mãos de aedo  Enquanto nós, a dar uns toques  No que não nos seja a contento  Vigiaremos o cozimento  Tomando o nosso uísque on the rocks.  Uma vez cozido o feijão  (Umas quatro horas, fogo médio)  Nós, bocejando o nosso tédio  Nos chegaremos ao fogão  E em elegante curvatura:  Um pé adiante e o braço às costas  Provaremos a rica negrura  Por onde devem boiar postas  De carne-seca suculenta  Gordos paios, nédio toucinho  (Nunca orelhas de bacorinho  Que a tornam em excesso opulenta!)  E - atenção! - segredo modesto  Mas meu, no tocante à feijoada:  Uma língua fresca pelada  Posta a cozer com todo o resto.  Feito o quê, retire-se caroço  Bastante, que bem amassado  Junta-se ao belo refogado  De modo a ter-se um molho grosso  Que vai de volta ao caldeirão  No qual o poeta, em bom agouro  Deve esparzir folhas de louro  Com um gesto clássico e pagão.  Inútil dizer que, entrementes  Em chama à parte desta liça  Devem fritar, todas contentes  Lindas rodelas de lingüiça  Enquanto ao lado, em fogo brando  Desmilingüindo-se de gozo  Deve também se estar fritando  O torresminho delicioso  Em cuja gordura, de resto  (Melhor gordura nunca houve!)  Deve depois frigir a couve  Picada, em fogo alegre e presto.  Uma farofa? - tem seus dias...  Porém que seja na manteiga!  A laranja gelada, em fatias  (Seleta ou da Bahia) - e chega.  Só na última cozedura  Para levar à mesa, deixa-se  Cair um pouco da gordura  Da lingüiça na iguaria - e mexa-se.  Que prazer mais um corpo pede  Após comido um tal feijão?  - Evidentemente uma rede  E um gato para passar a mão...  Dever cumprido. Nunca é vã  A palavra de um poeta... - jamais!  Abraça-a, em Brillat-Savarin  O seu Vinicius de Moraes.