O Morro do Castelo

Vinicius de Moraes

(A lira que não escreveu Gonzaga)  Numa qualquer madrugada  De uma qualquer quarta-feira  O homem de pouca fé  Faz uma barba ligeira  (Que coisa estranha é ter barba... )  Toma um rápido café  E depois, ali na esquina  De Voluntários da Pátria  Pega o Largo dos Leões  E salta na Galeria  Bem em frente a São José.  - Irei de boa vontade...  Uma vez na encruzilhada  De São José com a Avenida  Vai seguindo toda a vida  Contra a viração do mar  Verás, fechados, uns bares  Como umas portas de luar  Mas segue; um pouco adiante  A um golpe de atiradeira  Fica a Cruz dos Militares  Pouco antes dobra à direita  Verás então a colina  E na colina, a ladeira...  - Não tem mais. Puseram abaixo  Tem sim. Ainda posso vê-Ia  Subindo em paralelepípedos  E no alto, luzindo, a estrela  À beira do precipício...  Tem sim! Tem sim! Lá está ela  Parada... e eis-me aqui, Vinicius  Menino, com meu velho avô  E minha branca avozinha  Que com um beijo me acordou...  - É inútil. Teu avô morreu...  Não morreu! Mentira tua!  Meu avô é um velho lindo  Com um olhar sempre altaneiro  E que anda sempre de alpaca  Ainda agora posso vê-lo  À luz da aurora imediata  Subindo, sempre subindo  Pelo morro do Castelo  Em demanda do mosteiro...  - Que Castelo? Já acabou!  Já acabou? Mas que absurdo!  Me lembro tão bem da entrada  Da água benta, do som surdo  E envolvente dos harmônios  A me expulsar os demônios  Da carne sempre acordada...  Me lembro tão bem da bênção  Dos turíbulos de incenso  Balançando, do passar  Dos sacristães reverentes  E os farfalhares ardentes  Da seda ritual, os dísticos  Bíblicos, a via-sacra  O misterioso soar  Das campainhas litúrgicas  O branco tecido místico  Das orações... Tudo calmo  Tudo alto... Tudo imenso...  - Deus morreu, pobre menino...  Deus não morreu. Que blasfêmia!  Deus é o pai da criação  Deus nos criou, macho e fêmea  Para nos sacrificarmos  Pela nossa salvação  Deus fez Adão, e fez Eva  De uma costela de Adão  Deus é Deus, o Pai Eterno  o caminho e a redenção...  Não digas... que Ele te leva  Para as profundas do inferno  O inferno sem remição...  - Deus morreu, pobre criança  Há muito que Deus morreu  Situa a tua esperança  No homem que em ti nasceu.  Deus é o teu medo da vida  E do que a vida te deu  Luta por um paraíso  Cá na terra, e não no céu  Que o inferno é aqui nesta terra  Inventado por teu Deus.  Esquece o mundo passado  No que não te esclareceu  Olha a miséria a teu lado  Que se a fez Deus, obrigado!  Podes ficar com o teu Deus!  Luta por teu semelhante  Pobre, e que Deus esqueceu  Que se por eles não lutas  Tampouco se importa Deus.  Cria a vida de ti mesmo  E não de um Deus insensível  Um bem preguiçoso Deus.  Não digo que tu esqueças  Dos desaparecidos teus  Mas não vivas sobre a morte  Que esta última consorte  É forte, e a prova de Deus  Pois se não crês e não crias  Ao fim dos teus poucos dias  Dela nem te salva Deus!