Carta aos amigos mortos

Sophia de Mello Breyner Andresen

Eis que morrestes - agora já não bate O vosso coração cujo bater Dava ritmo e esperança ao meu viver Agora estais perdidos para mim - O olhar não atravessa esta distância - Nem irei procurar-vos pois não sou Orpheu tendo escolhido para mim Estar presente aqui onde estou viva. Eu vos desejo a paz nesse caminho Fora do mundo que respiro e vejo. Porém aqui eu escolhi viver Nada me resta senão olhar de frente Neste país de dor e incerteza. Aqui eu escolhi permanecer Onde a visão é dura e mais difícil Aqui me resta apenas fazer frente Ao rosto sujo de ódio e de injustiça A lucidez me serve para ver A cidade a cair muro por muro E as faces a morrerem uma a uma E a morte que me corta ela me ensina Que o sinal do homem não é uma coluna. E eu vos peço por este amor cortado Que vos lembreis de mim lá onde o amor Já não pode morrer nem ser quebrado. Que o vosso coração que já não bate O tempo denso de sangue e de saudade Mas vive a perfeição da claridade Se compadeça de mim e de meu pranto Se compadeça de mim e do meu canto.