A brusca poesia da mulher amada (III)

Vinicius de Moraes

Rio de Janeiro A Nelita  Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado  Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido herói sem mácula  Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina  Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos  Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências  E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas  Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.  Eis que se anuncia de modo sumamente grave  A vinda da mulher amada, de cuja fragrância já me chega o rastro.  É ela uma menina, parece de plumas  E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos ventos  Empós meu canto. É ela uma menina.  Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina  Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes  Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos  Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos  Para cantar seus réquiens e os falsos profetas  A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.  Mas nada a detém; ela avança, rigorosa  Em rodopios nítidos  Criando vácuos onde morrem as aves.  Seu corpo, pouco a pouco  Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo  Como uma escura rosa voltejante  Surgida de um jardim imenso em trevas.  Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!  Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!  Alvoroçai-me, auroras nascituras!  Eis que chega de longe, como a estrela  De longe, como o tempo  A minha amada última!   Rio de Janeiro, 1950.