Balada das duas mocinhas de Botafogo

Vinicius de Moraes

Eram duas menininhas  Filhas de boa família:  Uma chamada Marina  A outra chamada Marília.  Os dezoito da primeira  Eram brejeiros e finos  Os vinte da irmã cabiam  Numa mulher pequenina.  Sem terem nada de feias  Não chegavam a ser bonitas  Mas eram meninas-moças  De pele fresca e macia.  O nome ilustre que tinham  De um pai desaparecido  Nelas deixara a evidência  De tempos mais bem vividos.  A mãe pertencia à classe  Das largadas de marido  Seus oito lustros de vida  Davam a impressão de mais cinco.  Sofria muito de asma  E da desgraça das filhas  Que, posto boas meninas  Eram tão desprotegidas  E por total abandono  Davam mais do que galinhas.  Casa de porta e janela  Era a sua moradia  E dentro da casa aquela  Mãe pobre e melancolia.  Quando à noite as menininhas  Se aprontavam pra sair  A loba materna uivava  Suas torpes profecias.  De fato deve ser triste  Ter duas filhas assim  Que nada tendo a ofertar  Em troca de uma saída  Dão tudo o que têm aos homens:  A mão, o sexo, o ouvido  E até mesmo, quando instadas  Outras flores do organismo.  Foi assim que se espalhou  A fama das menininhas  Através do que esse disse  E do que aquele diria.  Quando a um grupo de rapazes  A noite não era madrinha  E a caça de mulher grátis  Resultava-lhes maninha  Um deles qualquer lembrava  De Marília e de Marina  E um telefone soava  De um constante toque cínico  No útero de uma mãe  E suas duas filhinhas.  Oh, vida torva e mesquinha  A de Marília e Marina  Vida de porta e janela  Sem amor e sem comida  Vida de arroz requentado  E média com pão dormido  Vida de sola furada  E cotovelo puído  Com seios moços no corpo  E na mente sonhos idos!  Marília perdera o seu  Nos dedos de um caixeirinho  Que o que dava em coca-cola  Cobrava em rude carinho.  Com quatorze apenas feitos  Marina não era mais virgem  Abrira os prados do ventre  A um treinador pervertido.  Embora as lutas do sexo  Não deixem marcas visíveis  Tirante as flores lilases  Do sadismo e da sevícia  Às vezes deixam no amplexo  Uma grande náusea íntima  E transformam o que é de gosto  Num desgosto incoercível.  E era esse bem o caso  De Marina e de Marília  Quando sozinhas em casa  Não tinham com quem sair.  Ficavam olhando paradas  As paredes carcomidas  Mascando bolas de chicles  Bebendo água de moringa.  Que abismos de desconsolo  Ante seus olhos se abriam  Ao ouvirem a asma materna  Silvar no quarto vizinho!  Os monstros da solidão  Uivavam no seu vazio  E elas então se abraçavam  Se beijavam e se mordiam  Imitando coisas vistas  Coisas vistas e vividas  Enchendo as frondes da noite  De pipilares tardios.  Ah, se o sêmem de um minuto  Fecundasse as menininhas  E nelas crescessem ventres  Mais do que a tristeza íntima!  Talvez de novo o mistério  Morasse em seus olhos findos  E nos seus lábios inconhos  Enflorescessem sorrisos.  Talvez a face dos homens  Se fizesse, de maligna  Na doce máscara pensa  Do seu sonho de meninas!  Mas tal não fosse o destino  De Marília e de Marina.  Um dia, que a noite trouxe  Coberto de cinzas frias  Como sempre acontecia  Quando achavam-se sozinhas  No velho sofá da sala  Brincaram-se as menininhas.  Depois se olharam nos olhos  Nos seus pobres olhos findos  Marina apagou a luz  Deram-se as mãos, foram indo  Pela rua transversal  Cheia de negros baldios.  Às vezes pela calçada  Brincavam de amarelinha  Como faziam no tempo  Da casa dos tempos idos.  Diante do cemitério  Já nada mais se diziam.  Vinha um bonde a nove-pontos...  Marina puxou Marília  E diante do semovente  Crescendo em luzes aflitas  Num desesperado abraço  Postaram-se as menininhas.  Foi só um grito e o ruído  Da freada sobre os trilhos  E por toda parte o sangue  De Marília e de Marina. Balada Originalmente ligada à música e à dança, a balada despontou como expressão literária no século XIII, entre os povos de fala germânica. No século XV, apareceram baladas literárias sem qualquer vinculação com a música, como as do francês François Villon, em oitavas, exibindo características totalmente originais. Nos dois séculos seguintes, a balada praticamente caiu em desuso, voltando a desperetar interesse no século XVIII, quando despontou em meio aos escritores como um tesouro popular a ser redescoberto e valorizado. Um marco fundamental foi a publicação, em 1756, na Inglaterra, das Reliques of Ancient English Poetry (Relíquias da antiga poesia inglesa) , uma compilação levada a cabo pelo bispo Thomas Percy. Logo os românticos também se voltaram para a balada, nela procurando a espontaneidade musical e o acento popular. Nomes como Schiller, Heine e Victor Hugo deram nova dimensão ao gênero. Alguns compositores do período, especialmente Chopin e Brahms aludiram à forma lírica dando a algumas de suas peças o nome de "balada". O modelo francês foi o mais adotado: três estâncias de oito versos (repetindo-se sempre o último verso em cada uma delas), rimas em esquema ababacac, e um ofertório de quatro versos com rimas acac. No Brasil, os poetas parnasianos cultivaram a balada segundo a norma francesa, atraídos pela dificuldade formal. Já os poetas modernos adotaram o nome balada no título de alguns de seus poemas sem qualquer obediência a uma forma fixa, apenas chamando a atenção para a musicalidade dos versos ou para o seu conteúdo narrativo. Bons exemplos são Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, tendo sido este último o que mais se dedicou ao gênero, chegando a seu ponto alto no livro Poemas, sonetos e baladas.