De minha velha torre eu acompanho cada ano as aves que fogem dos climas atrozes
Lentas aves cuja multidão de asas batendo deixa a tempestade boiar sobre os verdes oceanos dos trópicos
E cujos corpos negros ocultam dias e dias o sol e à noite aprofundam a treva no frêmito profundo da sua passagem.
Da minha velha torre com que eu já me confundi ao Tempo e de quem sou a longínqua luz que os timoneiros vêem palpitando
E cujas escadas suspensas subi muita vez pensando atingir o céu descoberto em cima
Da minha velha torre onde já vi o vácuo dos tufões e das calmarias repousarem na sua sucessão eterna
Eu sigo cada inverno essas estranhas peregrinas fartas em cujas garras pendentes parecem se suspender catástrofes
Eu, a quem foi dada a suprema liberdade da visão incessante dos horizontes nas auroras e nas tardes
A quem foi dada a significação suprema das correntes invisíveis e da inconstância dos ventos e a quem
Foi dada a palavra luminosa só ela capaz de dirigir o movimento dos portos do mundo
Eu durante eras nada compreendi dessas dolorosas fugitivas mas em cuja imutável rotina sentia a fatalidade de alguma missão a cumprir...
"Às vezes sonhava que elas eram escravas de Deus prisioneiras de um misterioso plano cujo movimento fizesse girar a terra
Outras, que eram anjos tombados, para quem não bastasse o inferno e cujo castigo fosse a eterna imagem proibida do céu no espelho das águas
E sobre que elas de quando em quando mergulhassem, não para se alimentarem de peixes, mas para conseguirem as nuvens e as estrelas
E outras, que eram almas vagabundas, irmandade pródiga dos campos santos, sequiosas de um espaço em renovamento, que sei mais...
Mas agora, talvez por tê-las visto tão de perto que cheguei a lhes sentir a rigidez da carne
Talvez porque ouvi um grito partir da sua massa escura e julguei reconhecer cheio de horror a própria voz que trago na vida
Eu sei quem elas são e por isso canto quando lhes sinto o palpitar das asas que me chega mais cedo porque a minha velha torre é alta e tudo sabe.
Da minha velha torre eu direi, nessa linguagem que aprendi no silêncio e na emoção das fontes da vida
Nessa linguagem que se foi dada a muito poucos é porque só deve ser escutada por pouquíssimos
Eu direi, com a tristeza de me saber o mais fraco e o mais desolado e de me sentir gritando fora de mim por esse mundo contra o que nada posso:
Elas são os Destinos dos homens - sempre que um homem clama há um homem que escuta
E é como se em todo o clamor houvesse um apelo de paz e em toda a escuta uma necessidade de amargura
Nessa ordem de almas caminhando das dilacerações para os grandes vazios íntimos
As procelárias são como as imagens dos Destinos trazendo e fugindo as tempestades mas trazendo e fugindo
E deixando em cada ser o que tirou de outros e arribando continuamente nos ciclos...
É por isso que eu acompanho cada ano as procelárias que voltam dos climas atrozes
Na esperança de que ouça um dia o mesmo grito que ouvi e em que julguei reconhecer minha fala
Para que eu possa mostrar ao meu miserável pássaro, satélite da minha passada descrença e impostura
A grande procelária branca que vive agora em mim e cujas asas enormes se estendem por todos os horizontes
E que olhando o céu noturno canta com voz de rouxinol baladas perdidas de comoção e de ternura
Os belos seios embebidos no mar que se alimenta deles e que cresce,
cresce, cresce, pelo meu sexo, pelo meu peito, pelos meus olhos…