Carta aos puros

Vinicius de Moraes

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros  E em cujos olhos queima um lento fogo frio  Vós de nervos de nylon e de músculos duros  Capazes de não rir durante anos a fio.  Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos  Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios  Vós que almejais na carne o estigma dos martírios  E desejais ser fuzilados sem o lenço.  Ó vós, homens iluminados a néon  Seres extraordinariamente rarefeitos  Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos  E vos ciliciais à idéia do que é bom.  Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros  E vos julgais os portadores da verdade  Quando nada mais sois, à luz da realidade,  Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.  Ó vós que só viveis nos vórtices da morte  E vos enclausurais no instinto que vos ceva  Vós que vedes na luz o antônimo da treva  E acreditais que o amor é o túmulo do forte.  Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito  E erigis a esperança em bandeira aguerrida  Sem saber que a esperança é um simples dom da vida  E tanto mais porque é um dom público e gratuito.  Ó vós que vos negais à escuridão dos bares  Onde o homem que ama oculta o seu segredo  Vós que viveis a mastigar os maxilares  E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.  Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos  Que tudo equacionais em termos de conflito  E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito  E não sabeis vencer se não houver vencidos.  Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres  Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos  E maiusculizais os sentimentos nobres  E gostais de dizer que sois homens honestos.  Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres  Que só articulais para emitir conceitos  E pensais que o credor tem todos os direitos  E o pobre devedor tem todos os deveres.  Ó vós que desprezais a mulher e o poeta  Em nome de vossa vã sabedoria  Vós que tudo comeis mas viveis de dieta  E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.  Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra  Falsos chimangos, calabares, sinecuros  Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...  E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.