Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e Cidadão

Vinicius de Moraes

A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas. Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De repente não tinha pai. No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta De Augusto geralmente procrastinava a tarde. Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho Rangia nos trilhos a muitas praias de distância Dizíamos: “E-vem meu pai!”. Quando a curva Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes Mas ser marraio em teus braços, sentir por último Os doces espinhos da tua barba. Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura De quem se deixou ser. Teus ombros possantes Se curvavam como ao peso da enorme poesia Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios Para o cotidiano (e frequentemente o binóculo Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras Mirando o mar). Dize-me, meu pai Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance Que nunca revelaste a ninguém? Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona. Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde A um gesto do mar. A noite se fechava Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa. * Muitas vezes te vi desejar. Desejavas. Deixavas-te olhando o mar Com mirada de argonauta. Teus pequenos olhos feios Buscavam ilhas, outras ilhas... — as imaculadas, inacessíveis Ilhas do Tesouro. Querias. Querias um dia aportar E trazer — depositar aos pés da amada as joias fulgurantes Do teu amor. Sim, foste descobridor, e entre eles Dos mais provectos. Muitas vezes te vi, comandante Comandar, batido de ventos, perdido na fosforescência De vastos e noturnos oceanos Sem jamais. Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar Em silêncio. Foste um pobre. Mendigavas nosso amor Em silêncio. Foste um no lado esquerdo. Mas Teu amor inventou. Financiaste uma lancha Movida a água: foi reta para o fundo. Partiste um dia Para um brasil além, garimpeiro, sem medo e sem mácula. Doze luas voltaste. Tua primogênita — diz-se — Não te reconheceu. Trazias grandes barbas e pequenas águas-marinhas. Não eram, meu pai. A mim me deste Águas-marinhas grandes, povoadas de estrelas, ouriços E guaiamus gigantes. A mim me deste águas-marinhas Onde cada concha carregava uma pérola. As águas-marinhas que me deste Foram meu primeiro leito nupcial.  * Eras, meu pai morto Um grande Clodoaldo Capaz de sonhar Melhor e mais alto Precursor do binômio Que reverteria Ao nome original Semente do sêmen Revolucionário Gentil-homem insigne Poeta e funcionário Sempre preterido Nunca titular Neto de Alexandre Filho de Maria Cônjuge de Lydia Pai da Poesia. * Diante de ti homem não sou, não quero ser. És pai do menino que eu fui. Entre minha barba viva e a tua morta, todavia crescendo Há um toque irrealizado. No entanto, meu pai Quantas vezes ao ver-te dormir na cadeira de balanço de muitas salas De muitas casas de muitas ruas Não te beijei em meu pensamento! Já então teu sono Prenunciava o morto que és, e minha angústia Buscava ressuscitar-te. Ressuscitavas. Teu olhar Vinha de longe, das cavernas imensas do teu amor, aflito Como a querer defender. Vias-me e sossegavas. Pouco nos dizíamos: “Como vai?”. Como vais, meu pobre pai No teu túmulo? Dormes, ou te deixas A contemplar acima — eu bem me lembro! — perdido Na decifração de como ser? Ah, dor! Como quisera Ser de novo criança em teus braços e ficar admirando tuas mãos! Como quisera escutar-te de novo cantar criando em mim A atonia do passado! Quantas baladas, meu pai E que lindas! Quem te ensinou as doces cantigas Com que embalavas meu dormir? Voga sempre o leve batel A resvalar macio pelas correntezas do rio da paixão? Prosseguem as donzelas em êxtase na noite à espera da barquinha Que busca o seu adeus? E continua a rosa a dizer à brisa Que já não mais precisa os beijos seus? Calaste-te, meu pai. No teu ergástulo A voz não é — a voz com que me apresentavas aos teus amigos: “Esse é meu filho FULANO DE TAL”. E na maneira De dizê-lo — o voo, o beijo, a bênção, a barba Dura rocejando a pele, ai! * Tua morte, como todas, foi simples. É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou — Lembro-me que a manhã raiava em minha casa — já te havia eu Recuperado totalmente: tal como te encontras agora, vestido de mim. Não és, como não serás nunca para mim Um cadáver sob um lençol. És para mim aquele de quem muitos diziam: “É um poeta...” Poeta foste, e és, meu pai. A mim me deste O primeiro verso à namorada. Furtei-o De entre teus papéis: quem sabe onde andará... Fui também Verso teu: lembro ainda hoje o soneto que escreveste celebrando-me No ventre materno. E depois, muitas vezes Vi-te na rua, sem que me notasses, transeunte Com um ar sempre mais ansioso do que a vida. Levava-te a ambição De descobrir algo precioso que nos dar. Por tudo o que não nos deste Obrigado, meu pai. Não te direi adeus, de vez que acordaste em mim Com uma exatidão nunca sonhada. Em mim geraste O Tempo: aí tens meu filho, e a certeza De que, ainda obscura, a minha morte dá-lhe vida Em prosseguimento à tua; aí tens meu filho E a certeza de que lutarei por ele. Quando o viste a última vez Era um menininho de três anos. Hoje cresceu Em membros, palavras e dentes. Diz de ti, bilíngue: “Vovô was always teasing me...” É meu filho, teu neto. Deste-lhe, em tua digna humildade Um caminho: o meu caminho. Marcha ela na vanguarda do futuro Para um mundo em paz: o teu mundo — o único em que soubeste viver; aquele que, entre lágrimas, cantos e martírios, realizaste à tua volta.