Elegia quase uma ode

Vinicius de Moraes

Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem.  O verso que mergulha o fundo de minha alma  É simples e fatal, mas não traz carícia...  Lembra-me de ti, poesia criança, de ti  Que te suspendias para o poema como que para um seio no espaço.  Levavas em cada palavra a ânsia  De todo o sofrimento vivido.  Queria dizer coisas simples, bem simples  Que não ferissem teus ouvidos, minha mãe.  Queria falar em Deus, falar docemente em Deus  Para acalentar tua esperança, minha avó.  Queria tornar-me mendigo, ser miserável  Para participar de tua beleza, meu irmão.  Queria, meus amigos... queria, meus inimigos...  Queria...                                queria tão exaltadamente, minha amiga!  Mas tu, Poesia  Tu desgraçadamente Poesia  Tu que me afogaste em desespero e me salvaste  E me afogaste de novo e de novo me salvaste e me trouxeste  À borda de abismos irreais em que me lançaste e que depois eram abismos verdadeiros  Onde vivia a infância corrompida de vermes, a loucura prenhe do Espírito Santo, e idéias em lágrimas, e castigos e redenções mumificados em sêmen cru  Tu!  Iluminaste, jovem dançarina, a lâmpada mais triste da memória…  Pobre de mim, tornei-me em homem.  De repente, como a árvore pequena  Que à estação das águas bebe a seiva do húmus farto  Estira o caule e dorme para despertar adulta  Assim, poeta, voltaste para sempre.  No entanto, era mais belo o tempo em que sonhavas...  Que sonho é minha vida?  A ti direi que és tu, Maria Aparecida!  A vós, no pudor de falar ante a vossa grandeza  Direi que é esquecer todos os sonhos, meus amigos.  Ao mundo, que ama a lenda dos destinos  Direi que é o meu caminho de poeta.  A mim mesmo, hei de chamá-lo inocência, amor, alegria, sofrimento, morte, serenidade  Hei de chamá-lo assim que sou fraco e mutável  E porque é preciso que eu não minta nunca para poder dormir.  Ah  Devesse eu jamais atender aos apelos do íntimo...  Teus braços longos, coruscantes; teus cabelos de oleosa cor; tuas mãos musicalíssimas; teus pés que levam a dança prisioneira; teu corpo grave de graça instantânea; o modo com que olhas o âmago da vida; a tua paz, angústia paciente; o teu desejo irrevelado; o grande, o infinito inútil poético! tudo isso seria um sonho a sonhar no teu seio que é tão pequeno...  Ó, quem me dera não sonhar mais nunca  Nada ter de tristezas nem saudades  Ser apenas Moraes sem ser Vinicius!  Ah, pudesse eu jamais, me levantando  Espiar a janela sem paisagem  O céu sem tempo e o tempo sem memória!  Que hei de fazer de mim que sofro tudo  Anjo e demônio, angústias e alegrias  Que peco contra mim e contra Deus!  Às vezes me parece que me olhando  Ele dirá, do seu celeste abrigo:  Fui cruel por demais com esse menino...  No entanto, que outro olhar de piedade  Curará neste mundo as minhas chagas?  Sou fraco e forte, venço a vida: breve  Perco tudo; breve, não posso mais...  Oh, natureza humana, que desgraça!  Se soubesses que força, que loucura  São todos os teus gestos de pureza  Contra uma carne tão alucinada!  Se soubesses o impulso que te impele  Nestas quatro paredes de minha alma  Nem sei o que seria deste pobre  Que te arrasta sem dar um só gemido!  É muito triste se sofrer tão moço  Sabendo que não há nenhum remédio  E se tendo que ver a cada instante  Que é assim mesmo, que mais tarde passa  Que sorrir é questão de paciência  E que a aventura é que governa a vida  Ó ideal misérrimo, te quero:  Sentir-me apenas homem e não poeta!  E escuto... Poeta! triste Poeta!  Não, foi certamente o vento da manhã nas araucárias  Foi o vento... sossega, meu coração; às vezes o vento parece falar...  E escuto... Poeta! pobre Poeta!  Acalma-te, tranqüilidade minha... é um passarinho, só pode ser um passarinho  Eu nem me importo... e se não for um passarinho, há tantos lamentos nesta terra...  E escuto... Poeta! sórdido Poeta!  Oh angústia! desta vez... não foi a voz da montanha? Não foi o eco distante  Da minha própria voz inocente?  Choro.  Choro atrozmente, como os homens choram.  As lágrimas correm milhões de léguas no meu rosto que o pranto faz gigantesco.  Ó lágrimas, sois como borboletas dolorosas  Volitais dos meus olhos para os caminhos esquecidos…  Meu pai, minha mãe, socorrei-me!  Poetas, socorrei-me!  Penso que daqui a um minuto estarei sofrendo  Estarei puro, renovado, criança, fazendo desenhos perdidos no ar…  Venham me aconselhar, filósofos, pensadores  Venham me dizer o que é a vida, o que é o conhecimento, o que quer dizer a memória  Escritores russos, alemães, franceses, ingleses, noruegueses  Venham me dar idéias como antigamente, sentimentos como antigamente  Venham me fazer sentir sábio como antigamente!  Hoje me sinto despojado de tudo que não seja música  Poderia assoviar a idéia da morte, fazer uma sonata de toda a tristeza humana  Poderia apanhar todo o pensamento da vida e enforcá-lo na ponta de uma clave de Fá!  Minha Nossa Senhora, dai-me paciência  Meu Santo Antônio, dai-me muita paciência  Meu São Francisco de Assis, dai-me muitíssima paciência!  Se volto os olhos tenho vertigens  Sinto desejos estranhos de mulher grávida  Quero o pedaço de céu que vi há três anos, atrás de uma colina que só eu sei  Quero o perfume que senti não me lembro quando e que era entre sândalo e carne de seio.  Tanto passado me alucina  Tanta saudade me aniquila  Nas tardes, nas manhãs, nas noites da serra.  Meu Deus, que peito grande que eu tenho  Que braços fortes que eu tenho, que ventre esguio que eu tenho!  Para que um peito tão grande  Para que uns braços tão fortes  Para que um ventre tão esguio  Se todo meu ser sofre da solidão que tenho  Na necessidade que tenho de mil carícias constantes da amiga?  Por que eu caminhando  Eu pensando, eu me multiplicando, eu vivendo  Por que eu nos sentimentos alheios  E eu nos meus próprios sentimentos  Por que eu animal livre pastando nos campos  E príncipe tocando o meu alaúde entre as damas do senhor rei meu pai  Por que eu truão nas minhas tragédias  E Amadis de Gaula nas tragédias alheias?  Basta!  Basta, ou dai-me paciência!  Tenho tido muita delicadeza inútil  Tenho me sacrificado muito demais, um mundo de mulheres em excesso tem me vendido  Quero um pouso  Me sinto repelente, impeço os inocentes de me tocarem  Vivo entre as águas torvas da minha imaginação  Anjos, tangei sinos  O anacoreta quer a sua amada  Quer a sua amada vestida de noiva  Quer levá-la para a neblina do seu amor...  Mendelssohn, toca a tua marchinha inocente  Sorriam pajens, operárias curiosas  O poeta vai passar soberbo  Ao seu abraço uma criança fantástica derrama os óleos santos das últimas lágrimas  Ah, não me afogueis em flores, poemas meus, voltai aos livros  Não quero glórias, pompas, adeus!  Solness, voa para a montanha, meu amigo  Começa a construir uma torre bem alta, bem alta...