O bergantim da aurora

Vinicius de Moraes

Velho, conheces por acaso o bergantim da aurora Nunca o viste passar quando a saudade noturna te leva para o convés imóvel dos rochedos? Há muito tempo ele me lançou sobre uma praia deserta, velho lobo E todas as albas têm visto meus olhos nos altos promontórios, esperando. Sem ele, que poderei fazer, pobre velho? ele existe porque há homens que fogem Um dia, porque pensasse em Deus eu me vi limpo de todas as feridas E eu dormi — ai de mim! — não dormia há tantas noites! — dormi e eles me viram calmo E me deram às ondas que tiveram pena da minha triste mocidade. Mas que me vale, santo velho, ver o meu corpo são e a minha alma doente Que me vale ver minha pele unida e meu peito alto para o carinho? Se eu voltar os olhos, tua filha talvez os ame, que eles são belos, velho lobo Antes o bergantim fantasma onde as cordoalhas apodrecem no sangue das mãos... Nunca o conhecerás, ó alma de apóstolo, o grande bergantim da madrugada Ele não corre os mesmos mares que o teu valente brigue outrora viu O mar que perdeste matava a fome de tua mulher e de teus filhos O mar que eu perdi era a fome mesma, velho, a eterna fome... Nunca o conhecerás. Há em tuas grandes rugas a vaga doçura dos caminhos pobres Teus sofrimentos foram a curta ausência, a lágrima dos adeuses Quando a distância apagava a visão de duas mulheres paradas sobre a última rocha Já a visão espantosa dos gelos brilhava nos teus olhos — oh, as baleias brancas!... Mas eu, velho, sofri a grande ausência, o deserto de Deus, o meu deserto Como esquecimento tive o gelo desagregado dos seios nus e dos ventres boiando Eu, velho lobo, sofri o abandono do amor, tive o exaspero Ó solidão, deusa dos vencidos, minha deusa... Nunca o compreenderás. Nunca sentirás porque um dia eu corri para o vento E desci pela areia e entrei pelo mar e nadei e nadei. Sonhara...: “Vai. O bergantim é a morte longínqua, é o eterno passeio do pensamento silencioso É o judeu dos mares cuja alma avara de dor castiga o corpo errante...” E fui. Se tu soubesses que a ânsia de chegar é a maior ânsia Teus olhos, ó alma de crente, se fechariam como as nuvens Porque eu era a folha morta diante dos elementos loucos Porque eu era o grão de pó na réstia infinita. Mas sofrera demais para não ter chegado E um dia ele surgiu como um pássaro atroz Vi-lhe a negra carcaça à flor das ondas mansas E o branco velame inchado de cujos mastaréus pendiam corpos nus. Mas o homem que chega é o homem que mais sofre A memória é a mão de Deus que nos toca de leve e nos faz sondar o caminho atrás Ai! sofri por deixar tudo o que tinha tido O lar, a mulher e a esperança de atingir Damasco na minha fuga... Cheguei. Era afinal o vazio da perpétua prisão longe do sofrimento Era o trabalho forçado que esquece, era o corpo doendo nas chagas abertas Era a suprema magreza da pele contendo o esqueleto fantástico Era a suprema magreza do ser contendo o espírito fantástico. Fui. Por toda a parte homens como eu, sombras vazias Homens arrastando vigas, outros velhos, velhos faquires insensíveis As fundas órbitas negras, a ossada encolhida, encorujada Corpos secos, carne sem dor, morta de há muito. Por toda a parte homens como eu, homens passando Homens nus, murchos, esmagando o sexo ao peso das âncoras enormes Bocas rígidas, sem água e sem rum, túmulos da língua árida e estéril. Mãos sangrando como facas cravadas na carne das cordas. Nunca poderás imaginar, ó coração de pai, o bergantim da aurora Que caminha errante ao ritmo fúnebre dos passos se arrastando Nele vivi o grande esquecimento das galeras de escravos Mas brilhavam demais as estrelas no céu. E um dia — era o sangue no meu peito — eu vi a grande estrela A grande estrela da alba cuja cabeleira aflora às águas Ela pousou no meu sangue como a tarde nos montes apaziguados E eu pensei que a estrela é o amor de Deus na imensa altura. E meus olhos dormiram no beijo da estrela fugitiva Ai de mim! não dormia há tantas noites! — dormi e eles me viram calmo E a serpente que eu nunca supus viver no seio da miséria Deu-me às ondas que tiveram pena da minha triste mocidade. Eis por que estou aqui, velho lobo, esperando O grande bergantim que eu sei não voltará Mas tornar, pobre velho, é perder tua filha, é verter outro sangue Antes o bergantim fantasma, onde o espaço é pobre e a caminhada eterna. Eis por que, velho lobo, aqui estou esperando À luz da mesma estrela, nos altos promontórios Aqui a morte me acolherá docemente, esperando O grande bergantim que eu sei não voltará. ---