Rio de Janeiro
A Carlos Drummond de Andrade,
que com seu só título Boitempo
me deu a chave deste poema
Pai
Modorrando de tarde na cadeira
De balanço, a cabeça cai-não-cai.
Pai
Espantando o moscardo
Feito o boi faz com o rabo
Zum! iridesceu, se foi, múu.
Pai. Ah, como dói
Lembrar-te assim, pai pé-de-boi
Sentado à mesa mastigando sonhos
Boipai, entre as samambaias e avencas
Do pequeno jardim, utilinútil, ai...
Paiboi, paiboiota, boipapai
Babando amor no curral das acácias
Quebrando ferrolhos com a força
Dos cascos fendidos para não entrar mais boi
No chão de dentro, igual a mim...
Ah, como dói lembrar-te, boi
Triste, boiassim, a córnea branca
No olho trágico, ruminando o medo
Pelo novilho tresmalhado.
Pai. Boi.
Olhando do portão o chão de fora
Na noite escura, múu, à espera. Onde estou eu
Teu vitelão insone, onde?
Nas tetas de que rês? Em que pasto?
Que não o teu, e da boieira
Que também já se foi? Boipai
Paiboi.
Muge-me, boi-espaço
Da tua eternidade as cantigas
Mais lindas que soavas com teus dedos
Ungulados nas cordas da viola
Hoje partida. Geme
Boi-da-guia, tua nunca boesia
Dá-me, boi-de-corte
Um quilo de tua alcatra decomposta
Tua língua comida
Um carrinho de mão de tua bosta
Com que fertilizar minha poesia
Neste instante transposta.
Para plantar meu novo verso
Menos eu, mais canção, menos enxerto
Não posso prescindir da tua morte
Teus ossos, teu estrume
Tu bom pai, tu boipai, tu boiconsorte
Eu boiciúme.