(Três movimentos em busca da música)
C'est aussi simple qu'une phrase musicale.
Rimbaud
I
Foi no instante em que o luar desceu da face do Cristo como um velário
E na madrugada atenta ouviu-se um choro convulso de criança despertando
Sem que nada se movesse na treva entrou violentamente pela janela um grande seio branco
Um grande seio apunhalado de onde escorria um sangue roxo e que pulsava como se possuísse um coração.
Eu estava estendido, insone, como quem vai morrer — o ar pesava sobre mim como um sudário
E as ideias tinham misteriosamente retornado às coisas e boiavam como pássaros fora da minha compreensão.
O grande seio veio do espaço, veio do espaço e ficou batendo no ar como um corpo de pombo
Veio com o terror que me apertou a garganta para que o
[mundo não pudesse ouvir meu grito (o mundo! o mundo! o mundo!...)
Tudo era o instante original, mas eu de nada sabia senão do
[meu horror e da volúpia que vinha crescendo em minhas pernas
E que brotava como um lírio impuro e ficava palpitando dentro do ar.
Era o caos da poesia — eu vivia ali como a pedra despenhada no espaço perfeito
Mas no olhar que eu lançava dentro de mim, oh, eu sei que
[havia um grande seio de alabastro pingando sangue e leite
E que um lírio vermelho hauria desesperadamente como uma boca infantil longe da dor.
Voavam sobre mim asas cansadas e crepes de luto flutuavam — eu tinha embebido a noite de cansaço
Eu sentia o branco seio murchar, murchar sem vida e o rubro lírio crescer cheio de seiva
E o horror sair brandamente pelas janelas e a aragem balançar a imagem do Cristo pra lá e pra cá
Eu sentia a volúpia dormir ao canto dos galos e o luar pousar agora sobre o papel branco como o seio
E a aurora vir nascendo sob o meu corpo e ir me levando para as
[ideias negras, azuis, verdes, rubras, mas também misteriosas.
Eu me levantei — nos meus dedos os sentidos vivendo, na minha mão um objeto como uma lâmina
E às cegas eu feri o papel como o seio, enquanto o meu olhar hauria o seio como o lírio.
O poema desencantado nascia das sombras de Deus...
II
Provei as fontes de mel nas cavernas tropicais... (— minha imaginação, enlouquece!)
Fui perseguido pelas floras carnívoras dos vales torturados e penetrei os rios e cheguei aos bordos do mar fantástico
Nada me impediu de sonhar a poesia — oh, eu me converti à necessidade do amor primeiro
E nas correspondências do finito em mim cheguei aos grandes sistemas poéticos do renovamento.
Só desejei a essência — vi campos de lírios se levantarem da terra e cujas raízes eram ratos brancos em fuga
Vi-os que corriam para as montanhas e os persegui com a minha ira — subi as
[escarpas ardentes como se foram virgens
E quando do mais alto olhei o céu recebi em pleno rosto o vômito das estrelas menstruadas — eternidade!
O poeta é como a criança que viu a estrela. — Ah, balbucios, palavras entrecortadas e ritmos de berço. De súbito a dor.
Ai de mim! É como o jovem que sonhando nas janelas azuis, eis que a
[incompreensão vem e ele entra e atravessa à toa um grande corredor sombrio
E vai se debruçar na janela do fim que se abre para a nova paisagem e ali estende o seu sofrimento (ele retornará...)
Movimentos de areia no meu espírito como se fossem nascer cidades esplêndidas — paz! paz!
Música longínqua penetrando a terra e devolvendo misteriosamente a doçura ao espelho das lâminas e ao brilho dos diamantes. Homens correndo na minha imaginação — por que correm os homens?
O terrível é pensar que há loucos como eu em todas as estradas
Os faces-de-lua, seres tristes e vãos, legionários do deserto
(Não seria ridículo vê-los carregando o sexo enorme às costas como trágicas mochilas — ai! Deixem-me rir...
Deixem-me rir — por Deus! — que eu me perco em visões que nem sei mais...)
É Jesus passando pelas ruas de Jerusalém ao peso da cruz. Nos campos e nos montes a poesia das parábolas. Vociferações, ódios, punhos cerrados contra o mistério. Destino.
Oh, não! Não é a ilusão enganadora nem a palavra vã dos oráculos e dos sonhos
O poeta mentirá para que o sofrimento dos homens se perpetue.
E eu diria... “Sonhei as fontes de mel...”
III
Do amor como do fruto. (Sonhos dolorosos das ermas madrugadas acordando...)
Nas savanas a visão dos cactos parados à sombra dos escravos — as negras mãos no ventre luminoso das jazidas
Do amor como do fruto. (A alma dos sons nos algodoais das velhas lendas...)
Êxtases da terra às manadas de búfalos passando — ecos vertiginosos das quebradas azuis
Ô Mighty Lord!
Os rios, os pinheiros e a luz no olhar dos cães — as raposas brancas no olhar dos caçadores
Lobos uivando, Yukon! Yukon! Yukon! (Casebres nascendo das montanhas paralisadas...)
Do amor como da serenidade. Saudade dos vulcões nas lavas de neve descendo os abismos
Cantos frios de pássaros desconhecidos. (Arco-íris como pórticos de eternidade...)
Do amor como da serenidade nas planícies infinitas o espírito das asas no vento
Ô Lord of Peace!
Do amor como da morte. (Ilhas de gelo ao sabor das correntes...)
Ursas surgindo da aurora boreal como almas gigantescas do grande-silêncio-branco
Do amor como da morte. (Gotas de sangue sobre a neve...)
A vida das focas continuamente se arrastando para o não-sei-onde — cadáveres eternos de heróis longínquos
Ô Lord of Death!
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