Horas de Saudade

Castro Alves

Tudo vem me lembrar que tu fugiste, Tudo que me rodeia de ti fala. Inda a almofada, em que pousaste a fronte O teu perfume predileto exala No piano saudoso, à tua espera, Dormem sono de morte as harmonias. E a valsa entreaberta mostra a frase A doce frase qu'inda há pouco lias. As horas passam longas, sonolentas... Desce a tarde no carro vaporoso... D'Ave-Maria o sino, que soluça, É por ti que soluça mais queixoso. E não vens te sentar perto, bem perto Nem derramas ao vento da tardinha, A caçoula de notas rutilantes Que tua alma entornava sobre a minha. E, quando uma tristeza irresistível Mais fundo cava-me um abismo n'alma, Como a harpa de Davi teu riso santo Meu acerbo sofrer já não acalma. É que tudo me lembra que fugiste. Tudo que me rodeia de ti fala... Como o cristal da essência do oriente Mesmo vazio a sândalo trescala. No ramo curvo o ninho abandonado Relembra o pipilar do passarinho. Foi-se a festa de amores e de afagos... Eras — ave do céu... minh'alma — o ninho! Por onde trilhas — um perfume expande-se Há ritmo e cadência no teu passo! És como a estrela, que transpondo as sombras, Deixa um rastro de luz no azul do espaço... E teu rastro de amor guarda minh'alma, Estrela que fugiste aos meus anelos! Que levaste-me a vida entrelaçada Na sombra sideral de teus cabelos!... Curralinho, 2 de abril de 1870. Publicado no livro Obras completas (1921). Poema integrante da série Hinos do Equador. In: ALVES, Castro. Obra completa. Org. e notas Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 198