Germinal
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!
"Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço…"
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço…
Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre de feno lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.
Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em couro
dos batráquios, no açude, os gritos lancinantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e elegância dos barcos.
O crescente, recurvo, a treva em brilho frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de uma alfange.
Juca Mulato cisma…
A natureza cisma.
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
"Que tens, Juca Mulato ?…" e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
Cansado ele ? E por quê ? Não fôra essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga ?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa ?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada…
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente…
Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente
da filha da patroa…