A máscara da noite

Vinicius de Moraes

Sim, essa tarde conhece todos os meus pensamentos Todos os meus segredos e todos os meus patéticos anseios Sob esse céu como uma visão azul de incenso As estrelas são perfumes passados que me chegam...   Sim! essa tarde que eu não conheço é uma mulher que me chama E eis que é uma cidade apenas, uma cidade dourada de astros Aves, folhas silenciosas, sons perdidos em cores Nuvens como velas abertas para o tempo... Não sei, toda essa evocação perdida, toda essa música perdida É como um pressentimento de inocência, como um apelo... Mas para que buscar se a forma ficou no gesto esvanecida E se a poesia ficou dormindo nos braços de outrora... Como saber se é tarde, se haverá manhã para o crepúsculo Nesse entorpecimento, neste filtro mágico de lágrimas? Orvalho, orvalho! desce sobre os meus olhos, sobre o meu sexo Faz-se surgir diamante dentro do sol! Lembro-me!... como se fosse a hora da memória Outras tardes, outras janelas, outras criaturas na alma O olhar abandonado de um lago e o frêmito de um vento Seios crescendo para o poente como salmos... Oh, a doce tarde! Sobre mares de gelo ardentes de revérbero Vagam placidamente navios fantásticos de prata E em grandes castelos cor de ouro, anjos azuis serenos Tangem sinos de cristal que vibram na imensa transparência! Eu sinto que essa tarde está me vendo, que essa serenidade está me vendo Que o momento da criação está me vendo neste instante doloroso de sossego em mim mesmo Oh criação que estás me vendo, surge e beija-me os olhos Afaga-me os cabelos, canta uma canção para eu dormir! És bem tu, máscara da noite, com tua carne rósea Com teus longos xales campestres e com teus cânticos És bem tu! ouço teus faunos pontilhando as águas de sons de flautas Em longas escalas cromáticas fragrantes... Ah, meu verso tem palpitações dulcíssimas! — primaveras! Sonhos bucólicos nunca sonhados pelo desespero Visões de rios plácidos e matas adormecidas Sobre o panorama crucificado e monstruoso dos telhados! Por que vens, noite? por que não adormeces o teu crepe Por que não te esvais — espectro — nesse perfume tenro de rosas? Deixa que a tarde envolva eternamente a face dos deuses Noite, dolorosa noite, misteriosa noite! Oh tarde, máscara da noite, tu és a presciência Só tu conheces e acolhes todos os meus pensamentos O teu céu, a tua luz, a tua calma São a palavra da morte e do sonho em mim!