Elegia desesperada

Vinicius de Moraes

Alguém que me falasse do mistério do Amor Na sombra — alguém; alguém que me mentisse Em sorrisos, enquanto morriam os rios, enquanto morriam As aves do céu! e mais que nunca No fundo da carne o sonho rompeu um claustro frio Onde as lúcidas irmãs na branca loucura das auroras Rezam e choram e velam o cadáver gelado ao sol! Alguém que me beijasse e me fizesse estacar No meu caminho — alguém! — as torres ermas Mais altas que a lua, onde dormem as virgens Nuas, as nádegas crispadas no desejo Impossível dos homens — ah! deitariam a sua maldição! Ninguém... nem tu, andorinha, que para seres minha Foste mulher alta, escura e de mãos longas... Revesti-me de paz? — não mais se me fecharão as chagas Ao beijo ardente dos ideais — perdi-me De paz! sou rei, sou árvore No plácido país do Outono; sou irmão da névoa Ondulante, sou ilha no gelo, apaziguada! E no entanto, se eu tivesse ouvido em meu silêncio uma voz De dor, uma simples voz de dor... mas! fecharam-me As portas, sentaram-se todos à mesa e beberam o vinho Das alegrias e penas da vida (e eu só tive a lua Lívida, a lésbica que me poluiu da sua eterna Insensível polução...) Gritarei a Deus? — ai dos homens! Aos homens? — ai de mim! Cantarei Os fatais hinos da redenção? Morra Deus Envolto em música! — e que se abracem As montanhas do mundo para apagar o rasto do poeta! * E o homem vazio se atira para o esforço desconhecido Impassível. A treva amarga o vento. No silêncio Troa invisível o tantã das tribos bárbaras E descem os rios loucos para a imaginação humana. Do céu se desprende a face maravilhosa de Canópus Para o muito fundo da noite... — e um grito cresce desorientado Um grito de virgem que arde... — na copa dos pinheiros Nem um piar de pássaro, nem uma visão consoladora da lua. É o instante em que o medo poderia ser para sempre Em que as planícies se ausentam e deixam as entranhas cruas da terra Para as montanhas, a imagem do homem crispado, correndo É a visão do próprio desespero perdido na própria imobilidade. Ele traz em si mesmo a maior das doenças Sobre o seu rosto de pedra os olhos são órbitas brancas À sua passagem as sensitivas se fecham apavoradas E as árvores se calam e tremem convulsas de frio. O próprio bem tem nele a máscara do gelo E o seu crime é cruel, lúcido e sem paixão Ele mata a avezinha só porque a viu voando E queima florestas inteiras para aquecer as mãos. Seu olhar que rouba às estrelas belezas recônditas Debruça-se às vezes sobre a borda negra dos penhascos E seu ouvido agudo escuta longamente em transe As gargalhadas cínicas dos vampiros e dos duendes. E se acontece encontrar em seu fatal caminho Essas imprudentes meninas que costumam perder-se nos bosques Ele as apaixona de amor e as leva e as sevicia E as lança depois ao veneno das víboras ferozes. Seu nome é terrível. Se ele o grita silenciosamente Deus se perde de horror e se destrói no céu. Desespero! Desespero! Porta fechada ao mal Loucura do bem, desespero, criador de anjos! * (O desespero da piedade) Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos... Mas tende piedade também dos que andam de automóvel Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção. Tende piedade das pequenas famílias suburbanas E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina. Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte. Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá Que são virtuoses da própria tristeza e solidão Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca. Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram E tornam-se heroicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza. Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe aonde vão... Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo: Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus! Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus. Tende piedade dos homens úteis como os dentistas Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor. Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também. E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres! Tende piedade da moça feia que serve na vida De casa, comida e roupa lavada da moça bonita Mas tende mais piedade ainda da moça bonita Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus! Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação E sonham exaltadas nos quartos humildes Os olhos perdidos e o seio na mão. Tende piedade da mulher no primeiro coito Onde se cria a primeira alegria da Criação E onde se consuma a tragédia dos anjos E onde a morte encontra a vida em desintegração. Tende piedade da mulher no instante do parto Onde ela é como a água explodindo em convulsão Onde ela é como a terra vomitando cólera Onde ela é como a lua parindo desilusão. Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade Mas tende piedade também das mulheres casadas Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada. Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas Mas que vendem barato muito instante de esquecimento E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno. Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas De corpo hermético e coração patético Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas Que se creem vestidas mas que em verdade vivem nuas. Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres Que ninguém mais merece tanto amor e amizade Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade. Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras Que são crianças e são trágicas e são belas Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam E que têm a única emoção da vida nelas. Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade E outra, à simples emoção do amor piedoso Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne. Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas A vida fere mais fundo e mais fecundo E o sexo está nelas, e o mundo está nelas E a loucura reside nesse mundo. Tende piedade, Senhor, das santas mulheres Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim Piedoso com todos, que tudo merece piedade E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!