Sombra e luz

Vinicius de Moraes

I Dança Deus!  Sacudindo o mundo  Desfigurando estrelas  Afogando o mundo  Na cinza dos céus  Sapateia, Deus  Negro na noite  Semeando brasas  No túmulo de Orfeu.  Dança, Deus! dança  Dança de horror  Que a faca que corta  Dá talho sem dor.  A dama Negra  A Rainha Euterpe  A Torre de Magdalen  E o Rio Jordão  Quebraram muros  Beberam absinto  Vomitaram bile  No meu coração.  E um gato e um soneto  No túmulo preto  E uma espada nua  No meio da rua  E um bezerro de ouro  Na boca do lobo  E um bruto alifante  No baile da Corte  Naquele cantinho  Cocô de ratinho  Naquele cantão  Cocô de ratão.  Violino moço fino  - Quem se rir há de apanhar.  Violão moço vadio  - Não sei quem apanhará.  II Munevada glimou vestassudente.  Desfazendo-se em lágrimas azuis  Em mistérios nascia a madrugada  E o vampiro Nosferatu  Descia o rio  Fazendo poemas  Dizendo blasfêmias  Soltando morcegos  Bebendo hidromel  E se desencantava, minha mãe!  Ficava a rua  Ficava a praia  No fim da praia  Ficava Maria  No meio de Maria  Ficava uma rosa  Cobrindo a rosa  Uma bandeira  Com duas tíbias  E uma caveira.  Mas não era o que queria  Que era mesmo o que eu queria?  "Eu queria uma casinha  Com varanda para o mar  Onde brincasse a andorinha  E onde chegasse o luar  Com vinhas nessa varanda  E vacas na vacaria  Com vinho verde e vianda  Que nem Carlito queria."  Nunca mais, nunca mais!  As luzes já se apagavam  Os mortos mortos de frio  Se enrolavam nos sudários  Fechavam a tampa da cova  Batendo cinco pancadas.  Que fazer senão morrer?  III Pela estrada plana, toc-toc-toc  As lágrimas corriam.  As primeiras mulheres  Saíam toc-toc na manhã  O mundo despertava! em cada porta  Uma esposa batia toc-toc  E os homens caminhavam na manhã.  Logo se acenderão as forjas  Fumarão as chaminés  Se caldeará o aço da carne  Em breve os ferreiros toc-toc  Martelarão o próprio sexo  E os santos marceneiros roc-roc  Mandarão berços para Belém.  Ouve a cantiga dos navios  Convergindo dos temporais para os portos  Ouve o mar  Rugindo em cóleras de espuma  Have mercy on me O Lord  Send me Isaias  I need a poet  To sing me ashore.  Minha luz ficou aberta  Minha cama ficou feita  Minha alma ficou deserta  Minha carne insatisfeita.